Nos Cinemas | O Farol

Contém spoilers. Leia por sua própria conta e risco. Você foi avisado! 

 

Depois de uma estreia inesperadamente brilhante com A Bruxa, Robert Eggers retorna ao cinema de horror, dessa vez com mais um de seus desafiadores projetos, denominado O Farol. O filme foi recebido com muita empolgação em Cannes, recebendo elogios intensos da crítica. A antecipação a cada material de divulgação lançado era torturante, uma vez que a distribuidora do filme no Brasil não o lançou na mesma data, ou sequer próximo, do lançamento comercial nos EUA, em 31 de outubro de 2019.

O Farol chegou ao nosso país apenas do início do mês de janeiro. Entrei na sala com grande expectativa, pois Eggers me arrebatou completamente com A Bruxa. A maneira como o diretor trabalhou a atmosfera, os planos perfeitamente bem enquadrados e iluminados com luz natural, a crescente trilha musical a cada novo acontecimento sobrenatural, as diversas simbologias trazidas e críticas ao conservadorismo hipócrita da religião cristã e, claro, o excelente senso de ritmo em uma narrativa que se torna um hino atemporal pela liberdade feminina em sua conclusão apoteótica.

Poucos realizadores, desde William Friedkin com O Exorcista, me arrebataram de tal maneira e trouxeram com seu trabalho tantas sensações diferentes, do medo à curiosidade intelectual. De certa forma, sabia o que poderia encontrar em O Farol, mas, mesmo assim, não estava preparado para o que viria. Quando acabou a sessão, não sabia exatamente o que tinha visto ali.

Minha cabeça foi processando o filme nas próximas horas e precisava conversar com os amigos, pois Eggers, muito mais do que em A Bruxa, abre sua narrativa para interpretações, construindo assim uma experiência que, para cada espectador, é absolutamente única. Foi por esse motivo, pelo fato de O Farol ser, em sua essência, um exercício de leitura de seus elementos fílmicos e textuais, que chamei uma amiga do Clube, Yasmine Evaristo, para fazer dessa crítica uma grande colaboração e transformar o texto em um diálogo multifacetado. Primeiramente, falarei sobre minha experiência. Logo depois, virá a dela.

Parte 1 – Tiago Araújo

O Farol se inicia de maneira sóbria. Os diálogos do filme e algumas situações iniciais apontam para os acontecimentos futuros, mas Robert Eggers não se precipita. Calmamente, ele constrói dois personagens antagônicos, mas que representam a gênese da humanidade. A relação de ambos se encontra sempre por um fio, próxima de explodir em conflito, como a humanidade geralmente se comporta, se relacionando. Ela, porém, ganha camadas mais profundas a cada minuto em que os dois homens se veem em uma desesperadora situação de solidão e isolamento.

Subitamente, Thomas Howard (Robert Pattinson) compartilha de momentos de amizade, tristeza, confidências e até mesmo sexuais, com o personagem de Willem Dafoe, Thomas Wake. Assim, ambos representam a própria figura humana em seu estado mais brutalizado, isolado, natural. Por vezes, existe um abraço na figura do outro, mas também uma irritação e uma vontade de o destruir. Isso acontece gradativamente enquanto a narrativa avança e Eggers expõe simbolismos, crenças e situações cada vez mais bizarras que afastam o homem de sua condição de conforto e vivência em sociedade.

O diretor, portanto, abraça a viagem de cada um de nós rumo à escuridão, que, segundo o psicanalista Sygmund Freud, é a solidão. O ser humano sente a necessidade de ter alguém consigo, um parceiro sexual e emocional, alguém para dividir experiências. Os dois personagens até conseguem se conectar por momentos, mas a sua relação de quem é o dominante, assim como os machos geralmente se portam na natureza, destrói qualquer vestígio de civilidade ou até de amizade e carinho.

Do ponto de vista técnico, Eggers reduz as bordas do quadro para uma proporção quase quadrada, o que aumenta a sensação de pânico, a claustrofobia. Como se não bastasse, a estética em preto e branco, alinhada ao uso de sombras e fechando ainda mais os personagens e os condicionando a um espaço ínfimo da tela, leva a loucura deles a novos patamares. O uso da luz do farol enquanto luz divina que guia os dois homens, a relação com a castidade (uso de sereias perigosas de se envolver) e cobiça do homem de dominar a natureza e reafirmar sua condição como o ser dominante (o final expressa muito claramente o mito grego de Prometheus, em que o personagem tenta roubar o fogo para os humanos e é punido pelos deuses) são simbolismos explorados pelo cineasta, com ele flertando diretamente com o sobrenatural.

Ao fim da projeção, fica claro que o objetivo de Robert Eggers é traçar um estudo, agora sob o ponto de vista masculino (A Bruxa falava sobre a libertação feminina), do comportamento humano, da loucura em situações extremas e locais isolados, de como dois homens interagem entre si durante suas vidas em condições naturais, distantes da civilização. Isso é feito de maneira brilhante por Eggers, com recursos técnicos impressionantes e uma consciência perfeita da narrativa que tem mãos. Dessa forma, o diretor nos conduz e nos joga dentro do inferno, sem sequer nos preparar antes. Mais um arrebatamento, mais um. Desgraçado!

Parte 2 – Yasmine Evaristo

O som ou a ausência dele são características marcantes em O Farol. O ambiente em que os dois homens estão presos é marcado pelos sons locais, das águas, ventos, animais e de seus corpos se movendo pela ilha. O isolamento em que vivem é acentuado a cada momento que o silêncio em cena é quebrado pela respiração, pelos passos e objetos manuseados. Thomas Howard (Robert Pattinson) e Thomas Wake (Willem Defoe) conversam e suas respirações são elementos em cena que se destacam e, na ausência de ruídos, incomodam. O ambiente não combina com a vitalidade que, mesmo que pouca, emana deles. São dois homens no escuro, fundidos às sombras, elementos tão decadentes quanto aquelas paredes.

As gaivotas, a sirene, o bater das ondas, todos os elementos sonoros constroem o enlouquecimento gradativo do rapaz. Thomas Howard ouviu o som perturbador da sirene — que ecoa ao longo da primeira metade do filme —, o canto da sereia que domina sua mente quando ele abre mão dos tampões em seus ouvidos. Assim como no mito das Sirenes (Σειρήν, em grego Seiren), o gorjeio dos pássaros sobre a cabeça do marinheiro o perturba. As sereias, em suas origens gregas, são seres alados e não marinhos. Seu belo e enfeitiçado canto é levado pelo vento.

Tudo em seu entorno, em seu interno, grita. O som cresce em seus ouvidos e seu brado é emudecido e tomado pela feição contorcida, destacada em close-up pela câmera do diretor, a cada surto. Sua mente já está dominada. Seu desejo, consumado pelo corpo híbrido da mulher-peixe, supõe domínio pelo mito ou pelo medo que o assombra. Mas é o medo que o consume. Ao fim, nas pedras jaz o corpo de Thomas, silenciado, sob o som das ondas e das gaivotas. Outra vez as Sirenes alcançaram seu objetivo.

Parte 3 – Últimas considerações

É notável como as duas interpretações focaram em diferentes elementos. Enquanto eu quis ir para o lado da construção do estudo de personagem que o filme é, Yasmine apontou muito bem a qualidade poética da narrativa, além de trazer mais um ponto essencial: a utilização do som. Porém, em uma questão concordamos: O Farol é um grande filme, que sacramenta a posição de Robert Eggers como o maior talento do cinema de horror da atualidade, principalmente por sua qualidade estética/narrativa e sua vontade de, assim como os marinheiros de sua história, desbravar os mares sombrios da psicologia humana.

Essas visões muito particulares de dois críticos de cinema certamente não serão comuns à de um psicólogo, por exemplo, ou mesmo a de entusiastas do gênero. Essa pluralidade de interpretações, a possibilidade de abrir caminhos novos a cada conversa e a persistência daqueles acontecimentos na memória por horas depois da projeção é o que fazem o cinema valer a pena, o que nos hipnotiza e nos faz imergir cada vez mais nas nossas fantasias, sejam elas obscuras ou não.

Nota: ★★★★★

 

Ficha Técnica

Título Original: The Lighthouse

Direção: Robert Eggers

Roteiro: Robert Eggers, Max Eggers

Música: Mark Korven

Elenco: Robert Pattinson, Willem Dafoe, Valeriia Karaman, Logan Hawkes

Fotografia: Jarin Blaschke

Montagem: Louise Ford

Figurino: Linda Muir

 

 

 

 

 

 

 

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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