Miss In Scene | Dilili Em Paris

Uma garotinha negra está em meio a sua tribo preparando um vegetal para sua refeição. O som que emoldura a cena é o da natureza mesclado ao toque de uma música tribal. O plano aberto, que ressalta essa cena, se abre e mostra que a tal tribo é apenas um pedaço que compõe um zoológico em Paris. A garota, que tem sua rotina assistida pela população local é Dilili (Prunelle Charles-Ambron).  

Ela é uma imigrante da Nova Caledônia, e vem de um grupo étnico de nome Kanak. Dilili fugiu de sua tribo por viver o conflito de ser uma criança órfã, mestiça, não aceita pelos outros integrantes de seu grupo. Em certo momento do filme ela aponta que saiu da tribo por estar cansada de ser taxada como clara demais, mas ao chegar na França se sentiu rejeitada por ter a pele muito escura. 

Ainda assim, Dilili se mostra bem animada com a nova vida. Ela foi “resgatada” por uma professora – ao ser descoberta como ilegal no navio em que embarcou – e acabou ganhando um “lar”. Essa garotinha, esperta e sagaz, é a personagem do filme de animação Dilili Em Paris de Michel Ocelot, diretor das também animações Kiriku e os Animais Selvagens (2005) e As Aventuras de Azur e Asmar (2006). 

A animação se passa na Belle Époque e se destaca não apenas pela conhecida técnica de Ocelot, mas por abordar como práticas culturais podem cercear a liberdade de certas pessoas. O diretor, que também é roteirista, acerta ao colocar uma menina negra, não europeia como personagem principal. 

Ao longo da animação, Dilili conhece figuras que transitavam por Paris naquele período, como Claude Monet, Toulouse-Lautrec, Debussy e até o brasileiro Santos Dumont. Mas, o que realmente importa e se destaca no filme são as mulheres e sua relação com a sociedade. 

Ao conhecer o jovem entregador Orel (Enzo Ratsito), a menina decide investigar uma série de desaparecimentos que acontecem na cidade. Um grupo que se intitula “Os Mestres do Mal” estão saqueando bancos, furtando joalherias e sequestrando meninas. E toda essa onda de sequestro está relacionada a uma tentativa desses homens de “consertar” Paris e trazer o passado de volta, uma época em que as mulheres sabiam quais os “seus lugares”.

Em uma das falas de um personagem, que integra o grupo dos Mestres, é apontado como é absurdo, para eles, uma mulher frequentar uma universidade. Eles desprezam a inserção das mulheres no mercado de trabalho e na vida acadêmica. Eles sequestram as crianças – todas meninas – para ensiná-las desde cedo a serem obedientes. Sua frase de efeito é “Os Mestres do Mal curarão Paris“. Sim, no filme Paris está doente, mas não pelo motivo que eles apontam. 

Essas mudanças nos posicionamentos das mulheres e de suas influências na sociedade são apontadas na animação de diversas maneiras. Uma delas é na caracterização e personalidade da protagonista. Ela desbrava a cidade e se mostra mais inteligente do que os que a reduzem por sua cor e origem. Dilili fala um francês perfeito, aprecia e conhece a literatura canônica, admira outras mulheres que são estudiosas e está sempre questionando e aprendendo. Ela é a chama da vontade de ter conhecimento. 

Outra maneira de mostrar a liberdade alcançada pelas mulheres da época é na escolha da pessoas que a garotinha conhecerá em sua jornada. Ela entra em contato com Marie Currie, que a recebe para um chá da tarde; é acolhida como filha pela cantora Emma Calvé; conhece Colette e Camille Claudel em meio a sua investigação e compartilha suas ideias e é apoiada por Gertrud Stein e Sarah Bernardt. 

Como diria minha mãe, Dilili é uma garotinha xereta. E é essa xeretice que permite que ela avance em seus propósitos. E não é um caminho feito só de experiências doces e divertidas. Ela se sente só, triste, humilhada e percebe que carrega em si características que a marcarão por toda a vida. Como a personagem Emma Calvé mesmo diz “É a vida, mas feridas escondidas acabam se somando.”

Ao pensar que o filme é voltado para um público mais novo (sua classificação é 10 anos), podemos pensar que o tema é pesado. A questão que fica é no quanto precisamos discutir esse cerceamento que as mulheres ainda sofrem ao buscar algo além do que é previsto para a vida delas. A animação nos mostra a ampla variedade de mulheres, da mãe que vive com seus filhos na miséria à bem sucedida cientista, que também é mãe. Da mulher que acredita que outras mulheres não devem estudar, àquelas que investem em sua formação acadêmica. Da menina que foge em busca de aceitação, às outras meninas que só querem brincar e viverem sua infância. 

Dilili Em Paris é uma reflexão sobre como todos os dias é preciso afirmar que as mulheres devem ocupar vários espaços no mundo, sendo respeitadas e reconhecidas por suas conquistas. Uma bela animação sobre esperança. 

Nota: ★★★★✰

Dilili à Paris 2018 Michel Ocelot PosterFicha Técnica

Dilili Em Paris (Dilili à Paris, 2018)
Direção: Michel Ocelot
Roteiro: Michel Ocelot
Elenco: vozes de  Prunelle Charles-Ambron, Enzo Ratsito, Natalie Dessay
Música de: Gabriel Yared
Montagem:
Patrick Ducruet
Animador: Yves-Marie Beaufrand, Joris Chapelin

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Yasmine Evaristo

Artista visual, desenhista, eterna estudante. Feita de mau humor, memes e pelos de gatos, ama zumbis, filmes do Tarantino e bacon. Devota da santíssima Trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch, sempre é corrompida por qualquer filme trash ou do Nicolas Cage.

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