Horrorscópio | Arraste-me para o Inferno
Este texto contém spoilers. Leia por sua própria conta e risco. Você foi avisado!
Versão assistida: Sem cortes (Uncensored). Pode haver cenas um pouco diferentes da versão de cinema.
Sam Raimi tem um estilo bem old school de se dirigir filmes. Não à toa seus projetos são sempre associados a filmes feitos de modo mais artesanal ou que apresentem exercícios de gênero que remetem aos filmes de horror “nojentos” do século XX. Raimi é um adepto de se usar uma mão forte na linguagem, usando de diversos artifícios para efetivamente causar uma atmosfera pesada, mas nunca esquecendo seus personagens.
Até mesmo em suas incursões por outros gêneros o diretor mantém suas raízes de comédia escrachada e horror. Em cada Homem-Aranha, por exemplo, encontramos personagens que se encontram a apenas um passo da loucura, sempre sendo dominados por forças internas, mas que são retratadas de maneira um tanto quanto fantasmagórica. Falo das aparições de Norman Osborn em sua mansão, das cenas bizarramente assustadoras das garras matando médicos e dominando o corpo de Dr. Octavius e de Venom tomando o corpo de Peter Parker de maneira violenta.
Percebem o padrão? Seres sobrenaturais invadem a individualidade das pessoas, as dominando e transformando em monstros, que anteriormente só precisavam de um empurrãozinho para aparecer. Isso sempre é acompanhado por um contexto rico em que se discute algum tema relevante para a sociedade, com Raimi desenvolvendo propriamente seus personagens e, muitas vezes, os transformando em figuras absolutamente icônicas. Evil Dead é um festival de sangue e bizarrices. Seguindo a tônica do horror punitivo dos anos 70, o moralismo vem em forma de demônio para punir os jovens inconsequentes e fracos, expondo os seus lados mais nojentos e violentos.
Novamente em Homem-Aranha, o grande tema da serie de três filmes é Peter entender que poderes vêm com responsabilidade, o que o herói aprende a duras penas matando o assassino do tio, querendo ter uma vida normal no segundo filme e se deixando levar pela força e confiança que Venom lhe traz. Até mesmo os filmes apenas produzidos por Raimi possuem também bons conceitos. O Grito de 2004 e o remake de 2020 falam sobre a maldição do ódio, em momentos políticos muito relevantes para o mundo, afinal, 2004 era um ano de consequências do fatídico 2001 com os ataques terroristas aos EUA, enquanto 2020 apresenta a ascensão do conservadorismo e de líderes da extrema direita como Jair Bolsonaro e Donald Trump. Predadores Assassinos é uma jornada sobre a reconstrução de uma família, e O Homem nas Trevas é sobre pensar antes de tentar ser mais esperto que alguém debilitado fisicamente ou intelectualmente.
Para além de grandes temas, Raimi tem um estilo bem reconhecível de trabalho de atmosfera. Muitos de seus filmes se iniciam com uma trilha sonora épica, ou assustadora, e uma abertura com animações que já preparam o público para algumas situações que serão exploradas mais à frente, além de plantar um leve arrepio na espinha. Raimi primeiro nos faz entender quem são seus personagens, quais suas motivações e pra onde têm que ir, para depois começar o show de bizarrices que beira o insuportável (mas de maneira boa, se é que isso é possível).
O diretor utiliza de um sem fim de artifícios técnicos para isso. O mais reconhecível é o ângulo holandês, que seria basicamente a câmera utilizada deliberadamente de maneira torta, causando um estranhamento forte no espectador, estando este muito acostumado a planos em sua maioria bem equilibrados e mais retos. É justamente esse estranhamento que o cineasta busca na grande maioria das situações de horror de seus projetos. Raimi também tem uma grande afeição por secreções, como vômito, sangue espirrado violentamente, insetos sendo cuspidos e ele segue até onde sua imaginação o leva. Outros dois elementos importantes em sua cinematografia: o olho, como uma espécie de janela da alma, que reflete a humanidade de seus personagens e seu corrompimento; e as sombras, sejam elas exploradas com intenções narrativas ou mesmo na ambientação.
Em Arraste-me para o Inferno, tudo isso está presente. O filme é, sobretudo, um excelente exercício de gênero, com Raimi o tornando intencionalmente retrô, com vários elementos presentes em clássicos do horror como O Exorcista e até o próprio Evil Dead, de sua autoria. Arraste-me se inicia apresentando o antagonista logo de cara, o demônio Lâmia, levando uma criança amaldiçoada para o quinto dos infernos. Essa decisão pode parecer estranha a princípio, te levando a perguntar: ué, mas isso não elimina o mistério do filme? Muito pelo contrário. Hitchcock dizia que se você tem uma bomba embaixo de uma mesa com diversas pessoas ao redor, a decisão de mostrar o pavio aceso sem que ninguém saiba causa grande efeito de suspense no espectador, que se torna exasperado pela consequência da ação.
Portanto, quando Raimi mostra o destino cruel de uma criança muito pequena nas mãos do antagonista, isso te deixa muito mais apreensivo para acompanhar como, quando e porque a personagem principal vai entrar em contato com o demônio. Depois disso, os elementos clássicos do Raimiverso vão surgindo um a um. Primeiro, os créditos assustadores e épicos te preparam, inclusive com informações que explicam um pouco da maldição que o filme abordará mais à frente. Logo após, o diretor, que também é roteirista da obra, desenvolve, sem perder um segundo, a motivação inicial de Christine, que é muito simples: ser promovida no trabalho, onde tem uma concorrência com um colega, que sabe menos que ela, mas que pode tomar a sua vaga. E por que isso? Simples, ele é homem, que, no mundo dos negócios, significa ser mais cotado para promoções e ganhar mais. Sutilmente essa mensagem é passada, sem qualquer tipo de panfletagem.
Outro personagem importante é apresentado logo a seguir: Clay, o namorado de Christine. Ele é muito amoroso e companheiro, mas, sendo um professor acadêmico (deixando claro que nem todo professor acadêmico pensa da mesma forma, mas muitos sim), ele acaba por possuir um ceticismo que o impede de acreditar no que Christine passa, ou até mesmo de participar mais ativamente na narrativa. Isso desencadeia diversos momentos em que Sam Raimi mira na discussão entre fé VS razão, algo que deixa ainda mais clara a inspiração do filme em O Exorcista, que acontece não só em termos de linguagem, mas também tematicamente.
Agora chegamos na cena capital do filme: uma idosa, Sylvia Ganush, de aparência bem bizarra, chega ao banco onde Christine trabalha. Ela pede para que o banco não tome sua casa. Depois da negativa de Christine, que decide não ajudar pensando em sua promoção, a senhora implora de joelhos. Aqui, Raimi filma Christine de baixo para cima, em contra plongée, deixando claro que ela é a dona daquela situação, a mulher que poderia ajudar. A protagonista novamente recua, fazendo com que a Sra. Ganush caia no chão e os seguranças venham lhe retirar. A próxima cena é uma grande sequência de terror físico, com direito a tentativa de mordida da idosa com a boca babada, carro em movimento e diversos outros elementos, filmado em sua grande maioria em primeiro plano ou planos de conjunto próximos ao rosto das personagens, aproveitando o impacto de sua luta.
Nessa cena, é imperativo que se perceba que existe um elemento que a grande maioria dos críticos detesta: o jump scare. Apesar de clichê, se bem utilizado, esse artifício pode, sim, gerar excelentes cenas. Nesse ponto, a atmosfera já está suficientemente bem construída com trilha musical, abertura e elementos de direção de arte, como a aparência bizarra e nojenta da Sra. Ganush, para tentar a surpresa ao espectador. Sam Raimi faz isso de maneira simples, mas muito efetiva. Basta um simples lenço voando, uma paralisação momentânea da trilha e uma troca rápida de câmera em que a senhora aparece na parte de trás do carro de Christine. O fato de se continuar havendo ação e nojeira prende a atenção e te faz ter reações negativas ao que está sendo visto, o que é o grande objetivo de Raimi aqui. Ponto para o diretor nesse quesito.
Outros dois elementos cruciais são apresentados ao fim da sequência: o botão e a maldição. Como vocês podem deduzir, a senhora utiliza de uma forma de justiça bem antiga, a do olho por olho, dente por dente, de Talião. Ela toma um botão da jaqueta de Christine, amaldiçoa-o e depois devolve para a dona. Raimi filma isso de modo inverso ao que fez na cena anterior, com a Sra. Ganush dominando a cena, grande, forte e imponente, contra a indefesa protagonista. Aqui temos o primeiro ponto de virada do roteiro, onde Christine agora tem de buscar quebrar a maldição, custe o que custar. Podemos agora, finalmente, retomar a contagem do Raimiverso: abertura épica, olho cego da Sra. Ganush, vômito com insetos, sangue espirrando, moscas sendo engolidas, morte de animais e muitos, mas muitos ângulos holandeses, sempre antes de uma grande sequência de horror como um alerta.
Deixei, deliberadamente, as sombras para um parágrafo único. O estilo com que Raimi decide ir mostrando aos poucos a figura demoníaca é particularmente muito criativo. Algumas cenas começam com perturbações físicas, como terremotos, objetos (ou até pessoas) sendo arremessados, ventanias e por aí vai. Ao fim, enquanto Christine vai ficando cada vez mais perturbada, a figura de Lâmia, o clássico bode tão reconhecido na religião cristã como um símbolo maléfico, vai se formando em sombras e ataca a protagonista. Esse artifício é interessante, pois é visualmente mais misterioso e narrativamente mais eficiente, no sentido de notarmos bem a sua presença, mas nunca o vermos. Isso vai aumentando a ansiedade de Christine, além de parecer efetivamente algo que possivelmente reside somente em sua mente. Claro que não poderia esquecer a Sra. Ganush como parte da manifestação da maldição, a manifestação mais física necessária para desenvolver toda a nojeira almejada pelo cineasta.
Antes de passar para a reta final do texto, gostaria de analisar mais uma cena com vocês, a da morte do gato de Christine. Um pequeno contexto: a personagem é informada por um médium da trama, outro personagem importante, inclusive, que deveria tentar um sacrifício para apaziguar o demônio que vem lhe perseguindo pela sua alma. A protagonista, portanto, decide matar o seu gatinho, logo depois de ser importunada por Lâmia. Sam Raimi filma a personagem apenas em sua parte de cima, censurando a morte do animal, mas mostra muito sangue escorrendo. O diretor aqui, apesar de parecer que deu uma aliviada na cena, na verdade intensificou os seus efeitos. Muitas vezes, a sugestão de uma morte causa muito mais efeitos psicológicos do que mostrá-la friamente. Ser inteligente em como e quando utilizar o gore ao seu favor é algo que, sem dúvidas, Raimi sabe como fazer.
A obra, então, segue seu curso natural. A brilhante trilha sonora com violinos amedrontadores de Christopher Young traz um som incidental, potente em sua dramaticidade. O uso delas nas cenas por Raimi deixa tudo muito mais dramático e assim o filme vai seguindo, se transformando efetivamente em uma tragédia grega clássica, do personagem que luta sem poder fazer nada para evitar que seu destino trágico se concretize.
O diretor até tenta um plot twist ao fim, dando esperança para a protagonista, mas não obtém muito sucesso, tamanha a obscuridade em que Christine mergulha. Também pudera, a trama vez por outra dá uma trapaceada com personagens burros (Christine é uma delas) e pequenos artifícios de roteiro para levar a história onde ela deveria ir. Sam Raimi também peca muito pelo excesso (como este crítico que vos fala). O diretor abusa da nojeira, a ponto de algumas cenas soarem desnecessárias no corte final, cansando o espectador. Além disso, o próprio fato do cineasta usar muito do jump scare e ter decupagens de cenas muito semelhantes entre si torna o filme ligeiramente previsível no segundo ato. Infelizmente também alguns efeitos visuais soam falsos demais, o que interrompe a imersão.
Apesar de não ser um filme perfeito, Arraste-me para o Inferno é um exercício de gênero delicioso para os fãs de horror. Além de muito bem construído narrativamente e tecnicamente, ainda possui discussões temáticas interessantes como o que é justiça, razão em contraposição à crença e até onde o egoísmo pode te levar. Reza a lenda que Sam Raimi vai dirigir o próximo Doutor Estranho, marcando sua volta ao gênero de super heróis 13 anos depois de sua saída, com Homem-Aranha 3. Que ele possua alguma autonomia, pois é o homem certo para trabalhar terror e comédia na medida, um ícone do cinema moderno. Ah, e que volte a exercitar seu horror maluco muito em breve, pois todos nós estamos com saudades.