Especial | 40 anos sem Hitchcock: O perfeccionismo de seu propósito

“Em geral, as sequências de suspense de um filme são seus momentos privilegiados, aqueles destaques que permanecem na memória do espectador. Hitchcock quer que toda e qualquer cena seja um momento privilegiado e todos os seus esforços durante a carreira foram direcionados a trabalhar filmes sem furos ou falhas.

É essa determinação a manter a audiência ininterruptamente atenta, a criar e manter a emoção, a sustentar a tensão, que tornam os filmes de Hitchcock tão completamente pessoais e únicos. Não são apenas nas passagens cruciais da história que ele exercita sua autoridade; seu perfeccionismo de propósito é também refletido na exposição, nas transições, e em todas as sequências que na maioria dos filmes são inconsequentes.”

(Francois Truffaut, no livro “Hitchcock/Trauffaut”)

 

François Truffaut fala, na passagem acima, como Alfred Hitchcock era um diretor perfeccionista que transformava cada momento de seus filmes em um momento especial, buscando incessantemente os melhores planos para contar a sua narrativa. Enquanto assistia os filmes do diretor inglês, eu tentava buscar o que tornava aqueles filmes tão singulares, porém, ao mesmo tempo, diferentes em temática, contexto e uso da linguagem. Em um determinado momento de Janela Indiscreta, o mesmo pensamento de Truffaut me veio à cabeça.

O que torna cada filme de Hitchcock um filme de Hitchcock, com assinatura, é o inigualável senso de propósito de cada um dos planos do diretor; como eles são estrategicamente pensados e perfeitamente bem executados, cada um servindo, justamente, dessa palavrinha: propósito. Para entender esse argumento, vamos trabalhar com cinco filmes do diretor: Um Corpo que Cai, Janela Indiscreta, Psicose, Festim Diabólico e Os Pássaros.

Não é surpresa para ninguém que Hitchcock fazia suspense, sendo esse o denominador comum dessas cinco obras. Como pensar nesse jogo psicológico que é o suspense, de forma a surpreender, causar pânico e tensão no espectador? Em Psicose, por exemplo, Hitchcock chocou plateias inteiras com a cena em que Marion Crane é esfaqueada à sangue frio no chuveiro do Motel Bates. A perspectiva da cena era de Marion, que desvanecia a cada golpe com a faca e observava o assassino em contra luz. Para causar todo esse impacto, o diretor britânico trabalhou com um primeiro plano na personagem feminina, um meio primeiro plano no assassino e diversos planos detalhes da faca e de outros objetos.

Na montagem, o cineasta picotou e uniu todos esses planos em que, de maneira harmônica com a música brilhante de Bernard Hermann, se tornou uma cena dinâmica, rápida, um tanto desnorteante que aumenta a sensação de violência e brutalidade de maneira simples, porém, efetiva. O que a cena significa para a narrativa do filme era também algo muito pouco visto: a quebra de expectativas.

O espectador já era, naquele ponto, acostumado a acompanhar filmes que levam seus protagonistas até o fim, sem “desperdiçá-los”. A genialidade de Hitchcock aqui é causar a ilusão de protagonismo para Marion Crane, quando, na verdade, o real protagonista é o psicopata Norman Bates, que se vestia como a mãe falecida e possuía os seus restos mortais.

Ainda em Psicose, outra cena que ilustra o propósito de se manter o suspense a todo custo é a cena da escada. Um homem entra na casa da sra. Bates. Ele é sempre enquadrado em planos gerais que revelam a imponente casa, enquanto o homem se aproxima, pequenino, da porta. Quando ele entra, Hitchcock começa a enquadrá-lo em meio primeiro plano. O personagem olha para as escadas, a montagem segue seu olhar com um plano da escada. Quando o senhor vai subindo, o diretor acompanha os seus passos diminutos.

Quando finalmente o homem chega em cima, Hitchcock não mostra ninguém vindo de perto, mas sim em uma câmera de cima para baixo, preservando a identidade novamente do assassino, contudo, mantendo a atenção do espectador que pode acompanhar a completude da ação. Finalmente, o personagem cai das escadas e a câmera o persegue, quase psicopata, até que ele vai ao chão. A cena não só é perfeita em ambientação, como também em mostrar que a casa e o assassino absorvem as suas vítimas. Não há escapatória, a morte está em qualquer esquina e ela sempre vai te surpreender.

Hitchcock

Enquanto o ponto de vista da obra de 1960 era sempre da vítima para intensificar o suspense, Hitchcock tinha um desafio diferente em Janela Indiscreta: contar uma história sobre o ponto de vista de um observador externo. A introdução dos personagens já é resolvida de maneira simples com plano contínuo que vem da rua, acompanha toda a vizinhança e os personagens que farão parte daquela história, entra pela janela e vai passando pelo protagonista (L.B Jeffries) suando por conta do calor. A câmera busca sua perna quebrada, passa por seu instrumento de trabalho (uma câmera também danificada), fotos de um acidente automobilístico e a cena fecha na imagem de uma mulher em uma revista — tanto o negativo da foto quanto a imagem em cores.

A confirmação de que Jeffries é um fotografo que sofreu um acidente e que possui um relacionamento instável com uma namorada vem nas cenas posteriores por meio de diálogos. Dessa forma, Hitchcock (de maneira sutil) já te entrega o contexto principal, podendo agora focar na criação do suspense da vez.

Para isso, é necessário um pouco de calma. A câmera funciona, por vezes, como uma câmera documental, apenas estimulando a observação. Em determinado momento, uma mulher grita em um dos prédios, então o cineasta mostra ações estranhas de determinado personagem e isso estimula o personagem principal a se tornar lentamente obsessivo. O protagonista não pode fazer nada fisicamente, mas precisa tentar desmascarar um possível assassino.

hitckcock janela

Outros personagens são envolvidos e a sanidade de Jeffries é testada inúmeras vezes. É na cena em que Lisa (a namorada do protagonista) decide subir ao apartamento para procurar uma pista crucial para o caso que o suspense atinge seu ápice. Todo o contexto é brilhantemente construído para que, tanto o personagem principal quanto o espectador, se debatam em suas cadeiras tentando ajudar a mulher a escapar das garras do assassino, que pouco a pouco chega próximo a ela. A câmera aqui é particularmente cruel ao explorar apenas os planos abertos, mais observadora do que nunca. Isso gera uma ansiedade tão forte que, provavelmente, seja o ponto dramático mais alto dos cinco filmes dessa amostra.

De Janela Indiscreta vamos para Um Corpo Que Cai. A ligação entre os dois é justamente nos planos afastados/abertos. Acompanhamos o detetive Scottie observando de longe Madeleine, tentando descobrir qual a sua ligação a uma antiga personagem que morreu. Aqui, o diretor trabalha de modo distinto de Psicose e Janela Indiscreta. O filme se mostra, de certa forma, muito mais romântico do que os demais e envolve expectativas dos dois amantes entre si, Scottie e Madeleine.

Enquanto um acreditava de maneira genuína que ajudaria a amada a se livrar de uma espécie de maldição sobrenatural, a outra era, na verdade somente uma atriz que fazia parte de um plano de assassinato. A expectativa desta recaía em viver o amor posteriormente, acreditando que toda a experiência não afetaria os sentimentos do protagonista. A grande questão do filme é que as ilusões deixam marcas muito fortes e balançam a humanidade que temos dentro de nós.

Por um momento, Hitchcock nos faz acreditar que Um Corpo que Cai segue um curso natural, até que (novamente) ele quebre com todas as expectativas sem que nenhum de nós perceba. O plot twist resolve todo o mistério apresentado e o suspense se esvai. Os minutos seguintes da obra demonstram toda a consequência dos atos dos personagens e novamente expõe o teor romântico do filme — o que mostra que Hitchcock não somente se importa apenas em causar efeitos, mas também em desenvolver bons personagens e fazer os seus sofrimentos serem sentidos muito tempo após a projeção. Para o diretor, não existem arestas que não sejam pontuadas e bem exploradas.

Aqui Hitchcock deixa muito à mostra o esquema de cores que ele passaria a usar em seus filmes coloridos. O verde para representar o idealismo amoroso e o mistério, além do vermelho que simboliza o desejo. Madeleine está sempre cercada de objetos de cena, figurinos e iluminações verdes, enquanto Scottie está a todo momento cercado de vermelho. As cores, apesar de serem de espectros diferentes, se complementam muito bem na construção do romance e se tornam cada vez mais significativas no decorrer da narrativa. O cineasta, inclusive, reserva uma cena completa (a do pesadelo do protagonista) para nos revelar o seu estado de espirito, revelando também a cor púrpura, classicamente conhecida com a cor da morte e amarelos de tom muito fortes para retratar o medo.

Por fim, existe uma célebre ideia de Hitchcock com relação à construção do suspense. Se existe uma bomba embaixo da mesa, o suspense é criado quando você mostra o pavio sendo acendido e torce para que os personagens notem antes que seja tarde demais. Essa ideia é usada perfeitamente em Festim Diabólico, a conhecida obra em “plano sequência” do diretor. O contexto é simples: a película se inicia com um rapaz sendo enforcado por dois homens, onde o colocam num baú e, logo depois, fazem uma festa, criando intrigas entre os convidados que detém alguma relação com o morto.

Se em Janela Indiscreta o plano era observatório e o suspense era criado daquela forma, em Festim Diabólico, Hitchcock limita o olhar, te direciona para o que ele quer que você veja, brincando com o espaço extracampo. O diretor, entretanto, sempre o faz para antecipar elementos essenciais da trama, os expondo antes da percepção dos personagens, o que segue à risca a ideia do pavio.

A tensão é constante e o suspense é criativo, já que ele não te deixa indefeso, mas sim te faz cúmplice do crime, revelando e avisando de tudo ao ponto de deixar o espectador impotente de chegar lá para desmascarar os vilões. O efeito é até semelhante ao de Janela indiscreta, mas a maneira de chegar até ele é completamente diferente.

A mesma coisa acontece em Os Pássaros, porém, em doses menores. Uma cena muito conhecida é a da protagonista Lydia, onde diversas pessoas estão conversando em um bar, até que uma delas nota um homem sendo atacado por um pássaro. O homem derrama gasolina e Hitchcock vai acompanhando todo o percurso que a gasolina vai fazendo, até enquadrar em outro homem que está prestes a acender um cigarro sem perceber que está sentenciando sua própria morte. A ideia é, inclusive, mais direta e conectada ao pavio descrito pelo diretor.

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Portanto, o ponto de vista dinâmico, a câmera observadora e participativa, o uso das cores e todos os demais elementos que Hitchcock utiliza para construir o suspense e a linguagem de seus filmes provém de uma vontade intrínseca ao fazer artístico: a busca pela perfeição. A busca pelo plano impecável evidencia ainda mais essa característica, afinal, não é todo dia que observamos um uso tão criativo do zoom no plano vertigem, da movimentação de câmera no plano sequência, do preenchimento de elementos em cena para criar o horror gráfico (em Os Pássaros, principalmente) ou mesmo do posicionamento estratégico pra te fazer um espectador cúmplice ou indefeso.

O cinema de Alfred Hitchcock respira pelo propósito de ser perfeito, de privilegiar cada momento e de criar grandes filmes.

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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