Descubra um Clássico | Os Rapazes da Banda (1970)
O surgimento em 1930 de um conjunto de normas que explicitava que tipo de conteúdo era aceito ou não nos filmes produzidos por grandes estúdios nos Estados Unidos, chamado Código Hays, foi um forte fator que contribuiu em grande parte para a estigmatização e marginalização da representação LGBTQI+ no cinema.
Eram onze pontos chaves conhecidos como “Don’ts“, que não poderiam aparecer em produções feitas pelos membros da Motion Picture Producers and Distributors of America – uma associação entre os principais estúdios estadunidenses da época, que adotou esse código de autocensura: 1) Profanidade — uso de palavras como “Deus”, “Senhor”, “Jesus” ou “Cristo” (a não ser no contexto de cerimônias religiosas), “inferno”, “droga” e outras palavras profanas e expressões vulgares de qualquer forma; 2) Nudez – de facto ou insinuada; 3) Tráfico de drogas; 4) Insinuação de perversões sexuais; 5) Escravidão de brancos; 6) Relações sexuais entre brancos e negros; 7) Higiene sexual e doenças venéreas; 8) Cenas de parto – de facto ou insinuada; 9) Órgãos sexuais de crianças; 10) Ridicularização do clero; e 11) Ofensa deliberada a qualquer nação, raça ou credo.
A homossexualidade, provavelmente, de acordo com a mentalidade da época, coincidia com o ponto chave número quatro. Somente em 1968 esse conjunto de normas foi substituído pelo sistema de classificação indicativa em vigor até hoje nos Estados Unidos.
Pior do que banir personagens LGBTQI+, o Código Hays foi responsável por estigmatizar esses papéis, modificando suas representações para apenas duas possibilidades: ou vilões perversos ou personagens trágicos. Por bastante tempo, especialmente entre as décadas de 1950 e 1970, poucos atores e atrizes, assim como estúdios, estavam dispostos a correr o risco de investir em projetos assim. Além disso, o medo de serem rotulados também era um agravante, no período.
Os efeitos para a representação de personagens LGBTQI+ no cinema estadunidense, que acabou se repercutindo pelo mundo, foram devastadores não apenas no período em que esteve vigente o Código Hays, mas também nos anos seguintes.
No entanto, em meio a esse conjuntura estigmatizada e negativa, surge o filme Os Rapazes da Banda, de 1970. Baseado na peça de mesmo nome escrita por Mart Crowley (que havia estreado no circuito Off-Broadway dois anos antes), o longa acompanha uma reunião de oito amigos organizada para comemorar o aniversário de um deles. O que começa como uma festa amigável, regada à muita bebida, lembranças, risadas e música, com o passar das horas vai se tornando uma noite em que segredos, fragilidades e dores serão expostas, o que desencadeará sentimentos outrora adormecidos e mágoas não ditas entre seus participantes.
O longa é considerado um marco para o cinema queer ao estar entre os primeiros filmes estadunidenses a abordar histórias que giravam em torno de personagens gays. Ainda que a obra possua indivíduos com arcos trágicos e se utilize de alguns estereótipos na construção deles, ao mesmo tempo ela tem coragem de abordar temas que circulam e são debatidos até hoje dentro da comunidade LGBTQI+, como homofobia, dificuldades de autoaceitação, solidão, depressão, envelhecimento, monogamia x poligamia, machismo e masculinidade frágil.
Dirigido por William Friedkin – antes de ganhar o Oscar de melhor direção com Operação França em 1972 e no ano seguinte dirigir um dos mais bem sucedidos filmes de terror da história, O Exorcista –, o fato de Os Rapazes da Banda ser uma adaptação para as grandes telas feita pelo próprio autor da peça original faz com que a proposta teatral seja mantida. Porém, o que torna a experiência em algo essencialmente cinematográfica é o olhar aguçado de Friedkin com sua impecável mise-en-scène (aliada à fotografia de Arthur J. Ornitz) que, mesmo limitada pelo espaço de um apartamento, consegue, através da iluminação e enquadramentos (principalmente no terço final), articular as emoções daqueles homens sem qualquer diálogo.
Nesse aspecto de como lidar com um local e os personagens inseridos nele, a direção é muito influenciada pela obra-prima de 1957 12 Homens e uma Sentença, de Sidney Lumet, onde também ocorre a difícil tarefa de manejar várias pessoas num único recinto – e essa influência e veneração pelo filme ficaria mais clara quando Friedkin dirigiu uma versão para a TV da peça em 1997, chegando a ser indicado pelo trabalho ao Emmy e Sindicato dos Diretores.
Mesmo que tenhamos um longo caminho ainda para percorrer, nos últimos anos tem sido possível notar o crescimento constante da representatividade de personagens LGBTQI+ tanto na tela grande quanto na TV. No entanto, é importante ressaltar que filmes como Os Rapazes da Banda, embora imperfeitos e passíveis de críticas, devem ser sempre lembrados pela sua importância e coragem de seguir contra a corrente ao abordar no cinema temas LGBTQI+ relevantes. Foram eles que deram os primeiros passos, na medida do possível – afinal, a mentalidade da época em relação à própria comunidade não estava tão evoluída como hoje –, em direção a uma representação de personagens homossexuais mais complexa e com maior profundidade.
Para o ano de 2020, sem data de estreia definida, há a previsão do lançamento de um remake de mesmo nome pela Netflix, com produção de Ryan Murphy (Glee, American Horror Story, American Crime Story e Pose) e direção de Joe Mantello – em sua estreia na função no cinema. Todos aqueles que atuaram no revival de 2018 da peça na Broadway repetirão seus papéis no longa, que contará com nomes como Jim Parsons (mais conhecido pelo seu papel na série The Big Bang Theory), Zachary Quinto (Star Trek e Margin Call – O Dia Antes do Fim), Matt Bomer (Magic Mike e The Normal Heart) e Andrew Rannells (Um Senhor Estagiário e Um Pequeno Favor). Todo seu elenco é composto por atores abertamente gays.
Nota: ★★★★★
Saiba mais sobre a representação LGBTQI+ no cinema:
- “O homossexual no cinema: o dilema da representação“, de Fábio Silveira. Café História, 2011. Leia aqui.
Ficha Técnica
Título Original: The Boys in the Band
Ano de Lançamento: 1970
Direção: William Friedkin
Roteiro: Mart Crowley
Elenco: Kenneth Nelson, Peter White, Leonard Frey, Cliff Gorman, Frederick Combs, Laurence Luckinbill, Keith Prentice, Reuben Greene e Robert La Tourneaux
Fotografia: Arthur J. Ornitz
Montagem: Gerald B. Greenberg & Carl Lerner