Especial | New Queer Cinema
Em celebração ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, o Clube da Poltrona decidiu fazer uma publicação especial sobre um dos movimentos cinematográficos mais importantes e influentes para o cinema LGBTQIA+: o New Queer Cinema.
Mas antes, é importante saber por que essa data é tão importante para a comunidade. 28 de junho de 1969 foi o dia em que aconteceu a Revolta de Stonewall, em Nova York, marcada por diversas manifestações espontâneas como resposta às violentas e repressoras batidas policiais no bar Stonewall Inn. Esse movimento é considerado o fato mais importante para a liberação do movimento gay, assim como a luta pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ tanto nos Estados Unidos quanto no mundo.
No mesmo dia em 1970, em comemoração ao primeiro aniversário dos protestos ocorridos no ano anterior, aconteceu a primeira Parada do Orgulho LGBT em diversas cidades dos EUA como Nova York, Los Angeles, São Francisco e Chicago, se espalhando pelo mundo todo ao longo dos anos.
No Brasil, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, veio a se tornar um dos principais e mais importantes eventos do calendário dessas cidades ao atrair milhares de turistas de diversas partes do país e do globo. Em 2006, a parada paulistana foi nomeada pelo Guiness World Records como a maior do planeta.
O New Queer Cinema foi um termo criado pela acadêmica B. Ruby Rich, publicado pela primeira vez em 1992 na revista Sight & Sound como forma de definir e descrever o movimento cinematográfico independente pautado em temas queer que surgira no início da década de 1990.
Mas o que significa a palavra queer?
De acordo com o Cambridge Dictionary, é um adjetivo oriundo da língua inglesa que busca definir “quem não se encaixa nas ideias tradicionais sobre gênero ou sexualidade, especialmente aquela de que todo mundo é homem ou mulher ou que as pessoas só devem ter relações sexuais com o sexo oposto” (traduzido livremente do inglês para o português).
Podemos definir o New Queer Cinema, antes de tudo, como um movimento político nascido no Reino Unido e na América do Norte que através do cinema buscou ser uma resistência aos movimentos conservadores que ganharam força nos anos 80 devido à epidemia de AIDS que assolava o mundo na época. Através de longas e curtas metragens, o que se viu foi um movimento experimental que buscava multiplicar as vozes e subverter a ótica heteronormativa vigente, inclusive na estética, o que impulsionou a criação de obras que desafiavam e geravam debates sobre questões de gênero, sexualidade e representatividade.
Para exemplificar o movimento New Queer Cinema, separamos oito filmes. Confira abaixo:
Paris is Burning
Ano: 1990
Direção: Jennie Livingston
Existe um mundo pré e pós Paris is Burning. O documentário, lançado em 1990, ao abordar os momentos finais dos chamados drag balls de Nova York através dos relatos de pessoas afro-americanas e latinas, gays e transexuais, pertencentes ao cenário, conseguiu sintetizar em poucos mais de 70 minutos muito do que era a comunidade LGBTQIA+ do período.
Ao fazer isso, o filme apresenta ao grande público não apenas a cultura desses grupos minoritários constantemente marginalizados e oprimidos, mas também abre discussões sobre classe, família, gênero, pertencimento, sonhos, identidade, preconceito, raça e sexualidade nos Estados Unidos, além de debater a influência da mídia sobre a sociedade e especialmente nessas minorias. Nas palavras da diretora Jennie Livingston para o jornal Orlando Sentinel em 1991 (traduzido livremente do inglês para o português):
“Este é um filme que é importante para qualquer um ver, seja gay ou não. É sobre como somos influenciados pela mídia; como nos esforçamos para atender às demandas da mídia tentando parecer com os modelos da Vogue ou tendo um carro grande. E é sobre sobrevivência. É sobre pessoas que têm muitos preconceitos contra eles e aqueles que aprenderam a sobreviver com inteligência, dignidade e energia. É uma pequena história sobre como todos nós sobrevivemos.”
No Skin Off My Ass
Ano: 1991
Direção: Bruce LaBruce
Um cabeleireiro punk (Bruce LaBruce) fica obcecado por um skinhead neonazista aparentemente mudo (Klaus von Brücker) que caminha pelas ruas de Toronto sem ter para onde ir. Um dia, ele o encontra num parque e o convida para sua casa, onde dará banho, conversará e aprisionará o desconhecido no quarto de hóspedes. Conseguindo fugir, o rapaz irá ao encontro da irmã Jonesy (G. B. Jones), uma cineasta, que tentará juntá-lo com o cabeleireiro.
A sinopse de No Skin Off My Ass pode parecer absurda, mas esse romance entre pessoas completamente diferentes tem um intuito no filme de estreia de Bruce LaBruce (Gerontophilia e The Raspberry Reich). O diretor, através dessa contradição, busca provar que às vezes pode existir apreciação e amor no fetichismo, cujas fantasias podem se tornar realidade. E, para isso, coloca duas pessoas diametralmente opostas capazes de se amar ao misturar realidade e desejo na tela. LaBruce utiliza uma estética suja e atuações de filme B, além de explorar cenas sexualmente explícitas, para representar um choque entre duas subculturas: a gay e a punk.
É um dos grandes exemplos presentes no movimento New Queer Cinema por transgredir padrões culturais e tabus sexuais, além de romper com a heteronormatividade. Filmado em preto & branco e em 8 mm, se tornou um filme Cult e curiosamente era o filme favorito de Kurt Cobain.
Veneno
Ano: 1991
Direção: Todd Haynes
Três histórias se entrecortam no filme de estreia do diretor Todd Haynes (Carol e Não Estou Lá). A primeira, chamada “Hero”, relata a história de um menino de sete anos que, após matar o pai a tiros, sai voando pela janela e desaparece. A segunda, intitulada “Horror”, conta a história de um cientista que após ingerir por acidente um experimento que reproduz o elixir da sexualidade humana, se transforma em um “leproso” assassino. Já a terceira história, denominada “Homo”, se passa numa prisão onde um dos detentos reencontra um conhecido (por quem sente atração) do reformatório juvenil, local onde passou a adolescência, e cujo passado do recém-chegado foi marcado por humilhações constantes. Cada uma das três narrativas possui um formato diferente.
Referência dentro do movimento New Queer Cinema e também do cinema independente, Veneno é um filme que aborda a homossexualidade em três situações. A primeira, através de uma criança sofrendo bullying na escola por ser diferente, sendo hostilizado pela comunidade e mergulhado na masculinidade tóxica e violência vindas do pai. A segunda, o homossexual como pária da sociedade, fazendo um paralelo com a estigmatização, marginalização e homofobia sofridas, principalmente, durante a epidemia de HIV/AIDS. E a terceira, a homofobia enraizada na sociedade, onde o homossexual se reprime e ao mesmo tempo é oprimido e violentado pelos que estão à sua volta.
Young Soul Rebels
Ano: 1991
Direção: Isaac Julien
Chris (Valentine Nonyela) e Caz (Mo Sesay) são dois amigos que dirigem uma rádio pirata de música soul e funk nos arredores de Londres, em um período que a música punk era a predominante. Enquanto o primeiro almeja trabalhar em uma rádio da cidade, mas sem se vender, o segundo está comprometido com o crescimento da sua própria rádio pirata. Numa noite, um amigo gay em comum dos dois é assassinado em um dos parques da cidade, cuja culpa pela morte do rapaz cairá sobre Chris após uma denúncia anônima.
Situado na Londres de 1977, às vésperas do Jubileu de Prata da Rainha Elizabeth II, Young Soul Rebels, importante adição ao movimento New Queer Cinema, é um filme socialmente e politicamente ressonante ao abordar relações étnico-raciais, relações entre classes sociais, racismo, homofobia e identidade. O longa traz para o centro da trama diversos grupos que disputavam os espaços da cidade no fim da década de 70: soul boys, punks, skinheads, e gays, colocando-os em um contexto marcado pelas tensões socioculturais e políticas existentes entre eles.
Em sua primeira oportunidade de comandar um longa-metragem, o diretor Isaac Julien não teve medo de questionar e provocar a reflexão do público, além de quebrar tabus da época ao apresentar um romance homossexual entre um jovem negro e um jovem branco, rompendo barreiras heteronormativas e racistas. Seu talento e coragem foram recompensados com o prêmio da SACD da Semana da Crítica no Festival de Cannes de 1991.
Garotos de Programa
Ano: 1991
Direção: Gus Van Sant
Parte livre adaptação das peças de William Shakespeare Henry IV – Part 1, Henry IV – Part II e Henry V, e parte baseado em ideias do próprio diretor e roteirista Gus Van Sant (Gênio Indomável, Elefante e Milk: A Voz da Igualdade), o filme narra a história dos amigos Mike Waters (River Phoenix) e Scott Favor (Keanu Reeves). O primeiro é um garoto de programa que sofre de narcolepsia e o segundo é um herdeiro rebelde que renega sua família e se prostitui por escolha. Os dois vão sair de Portland em uma jornada de autodescoberta que os levará à cidade natal de Mike, no Idaho, e em seguida a Roma, a procura da mãe de Mike que o abandonou ainda criança.
Garotos de Programa é uma das obras referenciais do movimento New Queer Cinema, se tornando notável pela coragem de abordar temas tabus na época como prostituição, drogas, sexo e homossexualidade. Além disso, possui um estilo narrativo muito próprio, ao contar a história do personagem Scott através de uma adaptação moderna de textos de Shakespeare. Já a jornada à procura da mãe de Mike é relatada de forma mais convencional, ainda que com muita personalidade.
River Phoenix foi premiado no Festival de Cinema de Veneza de 1991 e no 7º Independent Spirit Awards pela sua elogiada atuação no filme.
Eduardo II
Ano: 1991
Direção: Derek Jarman
Baseado na peça de mesmo nome escrita por Christopher Marlowe em 1592 e dirigido por Derek Jarman (Sebastiane e Caravaggio), o longa gira em torno de Eduardo II (Steven Waddington), herdeiro do trono inglês que ao se tornar rei, convoca seu amigo e amante plebeu Gaveston (Andrew Tiernan) de volta ao país do exílio na França. Ao presenteá-lo com títulos, riqueza e também seu amor, irá despertar a ira da nobreza inglesa, que através da fria rainha Isabella (Tilda Swinton) e do cruel Mortimer (Nigel Terry), vai tentar se livrar de Gaveston para destronar o rei e usurpar o poder.
Considerado um dos primeiros filmes a representar o movimento New Queer Cinema, Eduardo II, através de anacronismos, como o uso de figurinos modernos e a trilha sonora contemporânea, faz um paralelo entre a história do rei inglês, que, ao escolher amar um homem, sofreu a opressão da nobreza inglesa, com a luta pelos direitos LGBTQIA+ contra o estado inglês homofóbico e repressor dos anos 80 e 90.
O rei Eduardo II é apresentado como uma das primeiras referências para a comunidade devido a sua coragem de assumir e escolher seu amor por outro homem, enfrentando o preconceito e resistência presentes na Inglaterra do século XIV.
The Living End
Ano: 1992
Direção: Gregg Araki
Luke (Mike Dytri) é um hustler à deriva e despreocupado, já Jon (Craig Gilmore) é um crítico de cinema certinho e melancólico. Ambos são gays e HIV positivos lidando com as suas circunstâncias de formas completamente diferentes até que um dia seus caminhos se cruzam. Após um deles matar um policial homofóbico, eles pegam a estrada e partem em uma jornada com o lema “Foda-se o mundo!”.
Outra obra a fazer parte do movimento New Queer Cinema, The Living End é um filme propositalmente raivoso; uma resposta a um país governado por republicanos indiferentes à epidemia de AIDS que assolava os Estados Unidos no período; um ato de rebeldia contra o mundo, onde não há sonho americano. É encarar a estrada atravessando um país árido e empoeirado em busca de uma redenção que nunca iria acontecer. Naquela época, ser HIV positivo era praticamente uma sentença de morte, restava apenas esperá-la chegar.
O filme irresponsável de Gregg Araki (Mistérios da Carne e Pássaro Branco na Nevasca), como apontado em seus créditos inicias, é o Cinema sendo usado como instrumento de catarse.
The Watermelon Woman
Ano: 1996
Direção: Cheryl Dunye
Cheryl (Cheryl Dunye) é uma jovem negra e lésbica que trabalha durante o dia em uma videolocadora com a melhor amiga Tamara (Valarie Walker). Ela sonha em ser cineasta e, para tal, como primeiro projeto, decide fazer um documentário sobre uma atriz negra dos anos 30 conhecida por interpretar papéis estereotipados de “mammy” – arquétipo de mulheres negras que trabalhavam servindo e cuidando dos filhos de famílias brancas, cuja figura está fortemente enraizada na história da escravidão nos Estados Unidos –, sempre relegados à atrizes negras da época.
The Watermelon Woman foi o primeiro filme dirigido por uma mulher negra abertamente lésbica, sendo considerado um marco para o New Queer Cinema. Sob o comando de Cheryl Dunye (que também o escreveu e editou), o longa busca abordar temas como a dificuldade de se encontrar arquivos sobre biografias de mulheres negras queer que trabalharam em Hollywood, assim como o seu apagamento histórico. Com o passar da obra, a jornada da protagonista vai se entrelaçar com a biografia de Fae “The Watermelon Woman” Richards, em meio a sua busca por contar a história nunca lembrada de lésbicas negras dentro da própria história do Cinema enquanto produz o seu documentário.
Em 1996, The Watermelon Woman ganhou o Teddy Awards de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Berlim, sendo exibido em diversos outros festivais pelo mundo como o Festival Internacional de Cinema de Toronto; o New York Lesbian, Gay, Bisexual, & Transgender Film Festival; o Tokyo International Lesbian & Gay Film Festival (hoje chamado Rainbow Reel Tokyo); e o London Lesbian and Gay Film Festival (hoje chamado London LGBTQ+ Film Festival).
Os oito filmes acima, dentre muitos outros, foram responsáveis por pavimentar o caminho para o surgimento, a partir dos anos 2000, de longas com maior apelo universal com o público, como os indicados e vencedores do Oscar O Segredo de Brokeback Mountain, Milk – A Voz da Igualdade, Minhas Mães e Meu Pai, Carol, Moonlight: Sob a Luz do Luar, Uma Mulher Fantástica e Me Chame Pelo Seu Nome, por exemplo.
Atualmente, é possível notar um significativo progresso – ainda que com um longo caminho pela frente – na representação de personagens LGBTQIA+ no cinema. Narrativas em que a questão sexual das personagens não está necessariamente em primeiro plano, e sim questões diárias e universais, significam um gigantesco e importante salto em relação às histórias outrora contadas, marcadas por tragédias, ou representações estereotipadas. Que a evolução seja contínua e frutífera para o Cinema.
Vida longa ao New Queer Cinema!
Saiba mais:
“New Queer Cinema”, de Daryl Chin, GLBTQ Archives, 2002. Leia aqui.
“New Queer Cinema”, Grey Daisies, Internet Archives, 2013. Leia aqui.
“Movie movements that defined cinema: New Queer Cinema”, de Willow Green para a Empire Online, 2016. Leia aqui.
“A Beginner’s Guide to New Queer Cinema”, de E. Alex Jung para a Vulture, 2018. Leia aqui.
“New Queer Cinema: Cinema, Sexualidade e Política”. New Queer Cinema, 2015. Leia aqui.
“Como a revolta de Stonewall, em 1969, empoderou o ativismo LGBT para sempre”, de Vitor Paiva para a Hypeness, 2018. Leia aqui.
“28 de junho – Dia do Orgulho LGBTI”, de Jandira Queiroz para a Anistia Internacional Brasil, 2013. Leia aqui.