Na Netflix | Wasp Network: Rede de Espiões

Olivier Assayas é um cineasta muito interessante. Seus trabalhos mais recentes abraçam diferentes vertentes e mostram uma versatilidade única do francês. Enquanto Acima das Nuvens é um drama psicológico e flerta com a paródia, Personal Shopper é um terror sobrenatural que diversas vezes questiona o seu próprio papel enquanto gênero, pois o filme repetidamente invade o território do suspense e do mistério, estando sempre um passo à frente do espectador.

A maior qualidade de Assayas, além da versatilidade, é o lado humano que aborda em seus filmes. Os supracitados Acima das Nuvens e Personal Shopper são dois longas que se preocupam muito em estabelecer com competência os personagens e trabalhar bem cada um de seus conflitos, com o objetivo de desenvolver uma história rica dramaticamente, mas sempre ao redor de um grande tema e temas periféricos que permeiam a trama.

Acima das Nuvens fala sobre o isolamento e a conexão humana perdida de uma artista em decadência, enquanto Personal Shopper tem na perda familiar o seu grande foco, mas o primeiro também incita o debate entre o novo e o anacrônico, a arte e o comércio, e desenvolve uma protagonista com várias pessoas ao seu redor, mas que tem em seu âmago a solidão, situação comum com quem experimenta a fama.

Personal Shopper tem uma protagonista que sofre o luto, mas que busca o tempo todo o contato espiritual, sendo ela desconectada das relações humanas reais. Nesse caso, Assayas utiliza isso ao seu favor e parte em uma jornada que tem na mudança e na busca o seu principal atrativo, subvertendo expectativas o tempo inteiro.

Em ambos os filmes, o diretor francês trabalha com personagens femininas fortes e com atrizes no ápice de suas formas artísticas. Juliette Binoche dispensa apresentações em Acima das Nuvens e Kristen Stewart tem extraída suas duas melhores interpretações   uma delas rendeu à atriz o primeiro César de uma atriz americana na história da premiação. Tudo isso reflete perfeitamente as virtudes do novo projeto de Assayas, Wasp Network: Rede de Espiões, mas também nos dá indicativos de suas falhas.

As melhores personagens do filme são, justamente, as duas personagens femininas, Olga e Ana, vividas respectivamente por Penélope Cruz e Ana de Armas. Em um mundo de pequenas e grandes violências e traições, as mulheres parecem especialmente afetadas por sua maior capacidade de amar e por sua lealdade aos amados.

Olga tem o melhor arco dramático do filme, sofrendo um duplo abandono e nutrindo esperanças de novamente reunir a sua família e se afastar de um destino impiedoso e cruel. O roteiro a leva a momentos de grande impacto emocional, que Penélope Cruz interpreta de maneira forte e sensível.

Já Ana, vivida por uma Ana de Armas muito entregue ao papel, tem no amado Juan Pablo Roque, interpretado pelo competente Wagner Moura, sua expectativa de montar uma família e viver uma bonita história de amor. Assayas, porém, quebra essas expectativas à medida que afasta os dois personagens emocionalmente e explora as diferentes nuances de um relacionamento desgastado por mentiras e falsidade.

Uma cena resume com perfeição esse distanciamento: Juan Pablo chega em casa depois de não ter dado a menor satisfação à esposa com um braço deslocado e de óculos escuros. Ana o questiona, mas ele desconversa e mente sobre suas atividades. Em um breve momento, a personagem fala: “Tire os seus óculos e olhe para mim.”.

A ciência diz que um mentiroso muitas vezes desvia seu olhar e evita contato visual. O olho, filosoficamente falando, é muitas vezes referenciado como a janela da alma. O fato de Juan Pablo estar usando óculos escuros, ou seja, escondendo a sua alma de sua parceira ao mentir, reflete a disparidade da natureza do relacionamento.

Durante o filme, o relacionamento se torna cada vez mais vazio e revela uma unidade temática bem relevante: ter dinheiro e poder te afasta da humanidade, do sentimento real. Te faz querer mais e mais, alimentando a ganância e sugando sua alma no processo.

Wagner Moura, sendo a principal figura explorada nesse tema, entrega uma atuação que revela diferentes facetas de seu personagem. Em certos momentos, ele parece um piloto confiável e seguro de si, do que quer. Em outros, ele é frio, calculista e sua voz grave e trejeitos grosseiros lembram um gangster bem nos moldes de Al Pacino em Scarface, porém mais calcado na realidade.

Juan Pablo é “amigo” de Rene Gonzalez (Edgar Ramírez, também ótimo) e os dois fazem parte do jogo de espionagem que envolve também o manipulador Gerardo Hernandez (Gael García Bernal, em uma performance ok), os anti-comunistas Jose Basulto (Leonardo Sbaraglia) e Luis Posada Carriles (Tony Plana), o FBI e o governo de Fidel Castro, afinal, a história é justamente sobre uma rede de espiões cubanos agindo em solo americano para impedir uma derrubada do governo de Castro.

Rene Gonzalez é o real protagonista dessa história. É o marido de Olga e também um desertor. Apesar disso, Rene tem um código moral muito forte e durante sua trajetória demonstra ser fiel a uma causa e um propósito: ajudar os seus companheiros cubanos a qualquer custo. Isso acaba por ser outro tema importante no filme, a lealdade e como o ser humano lida com ela em suas diferentes fases da vida, inclusive em seus conflitos mais fortes.

O grande problema é que Rene é fiel aos companheiros, mas nem tanto assim à sua esposa. Além do jogo de espionagem em que se envolve, o principal dilema do personagem é reconstruir sua família e conseguir o perdão. O seu arco dramático é outro especialmente bem trabalhado por Assayas, e Edgar Ramirez cresce quando lhe é dada a oportunidade, especialmente quando contracena com a brilhante Penélope Cruz.

Os quatro personagens citados tem arcos sólidos e são o coração do filme, o lado humano da narrativa. Já o lado político tem suas figuras mais interessantes com Gerardo Hernandez e Jose Basulto, dois personagens de espectros opostos. Ambos tem uma boa importância na trama e conseguem expor bem cada lado da disputa política. De um lado Hernandez, lutando contra o imperialismo e controle americano, do outro Basulto, tentando implementar uma democracia, derrubando o ditador Fidel Castro do poder.

O tal anti-comunismo guarda muitos interesses, principalmente no fato de Cuba ser um país que pode sediar atividades econômicas extensivas e até mesmo ilegais, deixando os estrangeiros mais ricos e a população cubana muito mais desamparada, aumentando a desigualdade social e a exploração.

Por outro lado, o bloqueio econômico feito pelos americanos tornou a vida dos cubanos um inferno, os obrigando a racionar comida, com quedas constantes de energia e uma miséria crescente. É claro que é sensível o tópico da liberdade e da democracia, que deveria ser um direito fundamental, mas que é retirada por um regime controlador.

Os dois lados da moeda são bem explorados em suas potencialidades, cada um com suas falhas, hipocrisias e mentiras. Assayas também constrói cenas tensas na direção do filme, como a realista explosão dos aviões, filmadas sempre escondendo informações dos personagens e revelando ao público, com o espectador sempre sabendo de antemão o que pode acontecer enquanto os personagens envolvidos não sabem  algo utilizado por Hitchcock para construção do suspense e explicado por ele no livro de sua entrevista para Truffaut (você pode ler uma explicação breve nesse texto sobre Hitchcock), chamado “Hitchcock/Truffaut”.

Assayas, por trabalhar com um número expressivo de diálogos, também utiliza de uma técnica bem comum, porém, que comunica perfeitamente o que ele deseja: a quebra do eixo de 180º. Tiago, o que diabos é isso? Imagine um diálogo entre duas pessoas em que elas estão de frente uma para a outra. Se na cena uma pessoa, chamaremos de fulana, está olhando da direita para a esquerda, então a outra, a sicrana, deve estar, obrigatoriamente, olhando da esquerda para a direita, pois ambas estão se observando e conversando. Essa relação tem a ver com o olhar de cada personagem e o eixo funciona com base nisso.

Vamos olhar a cena de cima. Se a câmera estava filmando do lado esquerdo das duas pessoas e for para o direito, elas trocam de posição, com fulana agora olhando da esquerda para a direita e sicrana olhando da direita para a esquerda. Isso é confuso para o espectador e em termos de construção visual faz você se questionar onde está cada personagem na cena. A grande confusão ocorre quando essa mudança atinge um salto de 180º para o lado oposto, caracterizando assim a quebra do eixo de 180º.

                                                                                     Créditos da imagem: avmakers.com.br

Sim, eu sei que isso é difícil de entender com uma explicação tão básica, então vou colocar uma imagem pra te ajudar a tentar visualizar e também um vídeo do canal Acabou de Acabar. O fato é que essa é uma regra importante do cinema narrativo clássico, que sempre deve ser construído evitando a confusão geográfica do espectador. Voltando ao diretor, ele se utiliza dessa quebra de eixo propositalmente para indicar o ponto mais forte de um diálogo e também te dizer que algo pode dar errado no futuro da trama envolvendo o conteúdo da fala.

Como exemplo, cito uma cena entre três personagens. Eles conversam amigavelmente, até que um deles solta uma informação muito importante para o desenrolar de seu arco e da trama. Quando isso acontece, Assayas quebra o eixo, como que querendo que você preste atenção no que foi dito.

O filme mais a frente revela um desenrolar complicado para aquele personagem, envolvendo justamente o conteúdo da informação. Dessa forma, Assayas faz um foreshadowing (a antecipação de algo importante que virá a acontecer na trama) utilizando um recurso básico do cinema de maneira inteligente.

Mas Tiago, o diretor não confunde a plateia quando faz isso durante o filme? Não, porque sua abordagem é sutil, sempre quebrando o eixo de maneira simples e contida. Às vezes ele utiliza um breve movimento de câmera para isso, ou corta de maneira minuciosa, o que não te faz perceber de forma gritante o elemento utilizado.

Passando adiante, a estética que emula Cuba nos anos 80 e 90, contrastando com uma Miami limpa, dá uma impressão clara de diferença de poderio econômico. O destaque aqui vai para o design de produção de François- Renaud Lebarthe, que demonstra uma pesquisa intensa da arquitetura dos prédios, dos modelos dos carros e de todo o lado visual de Cuba, além de passar uma sensação de imersão e veracidade. Os figurinos chamativos de Jurgen Doering também são outro destaque, comunicando perfeitamente a personalidade de cada personagem e das organizações em que atuam durante o filme.

Wasp Network Ana de Armas

Porém, é exatamente nesse lado mais político da trama que Assayas comete os seus piores excessos. O cineasta fica deslumbrado pela possibilidade de explorar uma centena de personagens e isso desequilibra um filme que tinha potencial para ser mais concentrado e, portanto, uma jornada mais impactante e catártica. Existem algumas passagens no filme que me fazem refletir se realmente eram necessárias ou se eram um delírio de grandeza do diretor francês.

Me refiro, principalmente, a todo o núcleo da América Central do filme, que rapidamente é explorado e descartado como se fosse nada. Vários outros personagens têm momentos e espaço, mas nada fazem além de comentar algo rápido e desaparecerem. Isso dá uma sensação clara de filme inchado, com tanta informação que tira o foco do que realmente é relevante para a experiência.

Além disso, eu não consigo entender exatamente o que pensa o diretor sobre todo o contexto que aborda. Assayas fica em cima do muro em posicionamento querendo agradar a gregos e troianos, o que todos sabemos que é impossível. É claro que é admirável refletir sobre o lado bom e ruim de dois contextos políticos totalmente diferentes, mas fazer isso de maneira afastada parece remover um interesse genuíno de colocar o seu pensamento e sua impressão digital para o mundo ver, causar um debate e estender a sua presença para além de uma exibição curiosa.

Também me parece estranho o fato de Assayas simplesmente esquecer o destino de Juan Pablo e Ana ao fim do filme, o deixando para aqueles créditos clichês mostrando fotos reais das personalidades de forma documental, o que me revela que o diretor estava muito mais preocupado com centenas de outras coisas além do que deveria ser o mais importante: seus personagens.

Essa ambição do cineasta francês em contar uma grande história está muito presente em Personal Shopper, mas lá ele consegue, de maneira mais apropriada, transformar ânsia em qualidade. Aqui, o diretor é hábil em construir o universo que deseja, mas sua pretensão de explorar uma mistura de drama familiar, com filme de espionagem e até filme de máfia sucumbe aos seus próprios esforços, pois cega o realizador, que não consegue enxergar que sua obra possui necessidades diferentes para funcionar de maneira perfeita.

Wasp Network Gael Garcia Bernal

Wasp Network: Rede de Espiões é inquestionavelmente um filme de Olivier Assayas, contendo o seu estilo, sua versatilidade, a humanidade de seus personagens e suas conexões com temas relevantes, e também excelentes personagens femininas interpretadas por atrizes excepcionais.

Isso traz a qualidade técnica e narrativa do francês, mas também a sua ambição, o que pode desequilibrar uma obra e frequentemente acontece no cinema. Apesar disso, o saldo é positivo e o filme tem muito a oferecer. Poderia ser uma experiência ainda melhor no cinema, assim como, certamente, Destacamento Blood, de Spike Lee, seria. Porém, os dois filmes não se igualam na corrida por premiações e nem sequer em prestígio.

Nota: ★★★✰✰

 

Título Original: Wasp Network

Ano: 2020

Direção: Olivier Assayas

Roteiro: Olivier Assayas

Elenco: Penélope Cruz, Edgar Ramírez, Ana de Armas, Wagner Moura, Gael García Bernal, Leonardo Sbaraglia

Fotografia: Yorick Le Saux, Denis Lenoir

Trilha Sonora: Eduardo Cruz

Montagem: Simon Jacquet

Figurino: Jurgen Doering

 

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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