Horrorscópio | O Bebê de Rosemary
Atenção, o texto a seguir contém spoilers.
Em 1968, chegava nos cinemas o que seria um dos maiores clássicos do cinema de horror, O Bebê de Rosemary. Dirigido por Roman Polanski, um diretor que aborda temas sociais relevantes por meio de narrativas densas e que mexem com o psicológico deturpado de seus personagens, o filme te carrega pelo forte pânico social em que as mulheres se encontram todos os dias: o de ter suas vozes caladas por uma sociedade que normaliza o machismo e o controle. Curiosamente, esse filme não poderia vir de uma figura mais controversa porque, se Polanski é um diretor muito competente, ele é também um pedófilo e estuprador confesso e condenado, o que me leva a imaginar quantos níveis de hipocrisia existem nesse projeto.
Analisando a obra isoladamente, porém, Polanski já inicia com um grande plano geral da cidade de Nova Iorque, com uma trilha musical esquisitíssima, deixando claro que a Big Apple esconde muito mais segredos que aquelas conversinhas dos filmes do Woody Allen. Um casal, Rosemary (Mia Farrow, ex esposa de Woody Allen, curiosamente, e excelente no papel) e Guy (John Cassavetes, mostrando sua versatilidade enquanto artista), visita um apartamento a procura de uma mudança de ares. O diretor cuidadosamente percorre todo o apartamento, da mesma forma que um diretor inteligente de filme de casa mal assombrada faria. Isso, claro, tem um porquê bem definido, pois o local exibe uma personalidade ímpar, antiga, inóspita, secular, o que de cara já passa, mais uma vez, uma estranheza ao espectador, pois aqueles personagens não estão mudando para uma casa, ou um prédio, comum.
O casal se encanta com o apartamento e decide se mudar (é claro, afinal que personagem de filme de terror não se encanta com casas esquisitas, não é verdade?). Hutch (Maurice Evans), um amigo dos dois, os fala que a propriedade é, de fato, antiga e já foi lar de bruxos, além de várias tragédias já terem ocorrido por lá. É, novamente, muito lógico o que Polanski faz aqui. Ele, além de te introduzir o local, vai te apresentando cada personagem importante para a trama seguidamente e inserindo, aos poucos, os mistérios a serem desenvolvidos no segundo ato. O diretor, de cara, já coloca Rosemary frente a frente com uma personagem que, na cena seguinte, se suicida de maneira suspeita.
Mais suspeito ainda é a forma como o casal de velhinhos Castevet, que “adotou” a personagem que morreu e a tratava como filha, agiu quando eles viram-na morta na calçada. Ambos demonstraram uma tranquilidade bizarra e que nada condiz com a situação violenta presenciada. A escolha do cineasta em apresentar Roman e Minnie Castevet dessa forma contribui, novamente, para uma atmosfera de estranheza que estou comentando desde o início do texto. É isso que Polanski faz o filme inteiro, trabalha com um suspense psicológico que nada deve a Alfred Hitchcock, te instigando a cada momento a tirar conclusões do que acontece, mas nunca de maneira definitiva, sempre deixando uma brecha para uma possível loucura da protagonista.
Basta você somar os fatores para tirar certas conclusões. Guy é um ator com dificuldades para conseguir papéis. Depois de, rapidamente, virar amigo dos velhinhos Castevet e passar muito tempo com eles, o ator consegue papéis em condições suspeitas, com um concorrente ficando cego de uma hora para a outra. Enquanto o filme avança, Guy vai galgando um espaço em séries de TV e filmes, se tornando conhecido. Os Castevet também agem de maneira suspeita. Minnie dá um colar bizarro e com um péssimo cheiro para Rosemary, e parece estranhamente interessada na personagem. Se a essa altura você não associou o casal ao histórico de bruxaria comentada pelo amigo deles, Hutch, no início do filme, talvez você também esteja sobre efeitos de feitiçaria.
A cena mais emblemática do filme é fruto, justamente, da desconfiança de Rosemary. Convencida a gerar um bebê por Guy, ambos fazem um jantar. Minnie Castevet dá uma sobremesa para a protagonista (com a intenção de drogá-la), que come apenas um pedaço e joga o restante fora. Rosemary fica entre o desmaio e a consciência, alternando entre visões sombrias e uma pretensa realidade em que é estuprada pelo “Tinhoso”. Polanski realiza aqui um festival de imagens bizarras, montadas de maneira dinâmica. Planos detalhe das mãos do diabo e de seus olhos enquanto estupram a protagonista deixam claro o aspecto fantástico da cena, e tornam tudo muito mais chocante visualmente, um choque que o espectador não espera que vá acontecer. Uma fragilizada personagem, depois de arranhada e abusada, grita “Isso não é um sonho, é real”.
A sequência toda é tão memorável que uma versão igualmente bizarra é apresentada em Midsommar – O Mal Não Espera a Noite, de Ari Aster, demonstrando o quão influente a obra de Polanski se mostra. A cena é uma metáfora poderosa à dominância masculina, ao estupro, ao abuso, à violência contra a mulher, de maneira claramente crítica. É impossível comentá-la sem traçar paralelos com a vida real. Polanski perde Sharon Tate, sua esposa grávida de oito meses, brutalmente assassinada um ano depois da estreia do filme, em 1969, pelos seguidores de Charles Manson. Estes usaram de crenças e motivações escusas para justificar o assassinato, perpetuando uma violência sobre a a mulher, assim como no filme.
Polanski viria a estuprar uma criança de 13 anos, em 1977, fornecendo-a drogas, da mesma forma que Minnie Castevet e o próprio diabo fizeram em seu filme. É impossível, portanto, dissociar a tragédia pessoal do cineasta com a de sua obra, e, ao mesmo tempo, dissociá-lo do papel maligno da seita satânica e do diabo em seu próprio filme. Um crime, porém, jamais justifica o outro. Nunca justificará.
Após esse momento um tanto revelador, fica muito mais claro para o espectador do que para Rosemary que se trata, de fato, de uma seita satânica com seu marido envolvido. O segundo ato se concentra nos diversos abusos à sua saúde, desde um médico que não receita vitaminas e ordena à não acreditar em livros, ao marido obcecado por controlar a esposa a todo custo, tirando do caminho todos que tentarem alertá-la do que está acontecendo.
Rosemary começa a se sentir mal o tempo todo e o design de produção de Richard Sylbert, junto do figurino de Anthea Sylbert, deixam clara a transformação do ambiente e da personagem em algo sombrio, pois os dominantes tons de amarelo que remetem a algo solar, feliz, e de branco, que remetem à inocência, vão desaparecendo e dando lugar a tons cinzentos, pesados, tristes. Isso é complementado pelo corte de cabelo, que com frequência é utilizado no cinema como um símbolo de renovação, de mudança, mas que aqui tem uma simbologia semelhante à história bíblica de Sansão, o homem que perde suas forças ao ter o cabelo cortado.
Outro ponto forte do filme é a pista e recompensa, um clássico e fundamental elemento de roteiro. Quando Polanski mostra um armário barrado por um grande móvel, ele não o faz de maneira gratuita. Apesar de não ser nada sutil, isso certamente será utilizado pelo roteiro posteriormente, e de fato é, quando o armário se revela uma passagem para uma sala secreta. Não só esse elemento é apresentado e depois reutilizado, mas também outros no decorrer do filme, como o desaparecimento de peças de roupa, por exemplo, que se mostra uma parte primordial de um ritual satânico.
O grande erro do diretor é ter deixado sua protagonista no escuro por tanto tempo no segundo ato de uma maneira, por vezes, inverossímil. Por que diabos Rosemary não tenta, verdadeiramente, procurar um novo médico depois de passar mal por dias e ser alertada por vários amigos mais jovens em uma festa? Ao invés disso, as dores passam como mágica e ela simplesmente desiste da rebeldia que apresentava. Apenas ao fim do segundo ato é que a personagem descobre todo o esquema só para depois agir novamente de maneira estúpida ao não procurar nenhum dos vários amigos e conhecidos que o filme apresenta na festa, mas sim um médico responsável por uma única consulta.
Eu não acredito que o cineasta, e também roteirista, tenha tido a intenção de abordar uma personagem deliberadamente burra, até porque ela descobre todo o esquema de bruxaria de maneira perspicaz, mas a maneira como Polanski manipula o seu roteiro para chegar onde quer soa artificial, com sua mão pesada evidente para trazer um fim trágico para a protagonista. As cenas finais também soam um tanto expositivas demais, com explicações básicas de questões que já pudemos observar durante todo o filme.
Fica claro que o embate entre o velho e o jovem, o conflito de gerações, é ganho pelo tradicionalismo religioso, pelo maquiavélico “os fins justificam os meios”, pelo roubo da capacidade de livre-arbítrio de resolver o seu destino em prol de uma crença ou de interesses (quem aí lembra das Cruzadas realizadas pela igreja católica, ou dos preconceitos estimulados pelo protestantismo levante a mão!). As vítimas de estupro tem de conviver com o que sofrem para sempre, com muitas vezes a criança sendo um lembrete das coisas horríveis que sofreram, mas também uma salvação, com o instinto materno aflorando em si e as fazendo seguir em frente. Rosemary tem a escolha de Sofia, desistir daquilo e conviver com aquele horror pra sempre ou embalar o filho e aceitar que ela é, apesar de tudo, uma mãe. Ela escolhe o segundo caminho, fechando a obra de forma melancólica.
O Bebê de Rosemary é um filme perfeitamente bem escrito e conduzido por um diretor de personalidade ímpar, que te carrega para uma espiral de loucura e dor poucas vezes vista no cinema de horror. É um dos clássicos do gênero por brincar com o psicológico de seus personagens, algo que o cinema de horror atual pegou emprestado, com críticos o rotulando de maneira ridícula como o pós-horror, ou qualquer outro nome tosco semelhante. A obra também tem um véu de realidade que a recobre, estando em uma posição de metáfora perfeita em relação à história de Roman Polanski. Criatura e criador, nem mesmo nas histórias de Mary Shelley, estiveram tão conectados e indissociáveis. A maior semelhança é que a criatura é quase perfeita e o criador é que é o monstro.
Nota: ★★★★✰
Ficha Técnica
Título Original: Rosemary´s Baby
Direção: Roman Polanski
Roteiro: Roman Polanski
Elenco: Mia Farrow, John Cassavetes, Ruth Gordon, Sidney Blackmer, Maurice Evans, Ralph Bellamy
Fotografia: William A. Fraker
Montagem: Sam O´Steen, Bob Wyman
Trilha Musical: Krzysztof Komeda