Clube Cartoon | Pinóquio
Como dito anteriormente nessa seção, quase todos tem noção da relevância do gênio Walt Disney por ser o primeiro a acreditar no potencial das animações no formato de longa-metragem. Contudo, no aspecto financeiro, o ano de 1940 não foi muito positivo.
Se Fantasia era psicodélico, erudito e longo demais para o público-alvo (tinha mais de 2 horas de duração), Pinóquio foi o filme mais sombrio do estúdio numa época onde o mundo estava em guerra — o que levou seus próximos dois projetos a serem mais curtos e com um estilo narrativo mais fácil de ser compreendido pelas crianças.
Que nem em Dumbo (realizado um ano após), o roteiro já desenvolve o viés de fábula desde o início com o Grilo Falante no holofote cantando a música-tema vencedora do Oscar When You Wish Upon a Star, depois falando com a plateia e abrindo um livro com a história que está prestes a ser contada.
Disney não acreditava muito no potencial de um boneco feito de madeira de “segurar” sozinho toda a história, logo, o Grilo Falante (que aparece pontualmente no livro) se torna um coadjuvante essencial porque, já nos primeiros minutos, a Fada Azul o nomeia como a consciência do personagem-título para ajudá-lo a entender a diferença entre o certo e errado.
Por conta disso, já se institui um dos personagens mais importantes como bússola moral (leia-se: cristã) dos acontecimentos por meio dessa abordagem alegórica semelhante à de Bambi ao colocar animais pronunciando diálogos.
A adaptação do romance italiano escrito por Carlo Collodi no século XIX, devido à plataforma e ao contexto inserido, se torna mais difícil do que aparenta ser. Há a intenção de se criar um tom mais ameno através do humor cartunesco/corporal dos animais e pontuar grande parte dos segmentos com uma alegre trilha sonora, além da alteração de determinados elementos, como, por exemplo, o destino do Grilo Falante na obra original, que morre assassinado pelo próprio protagonista com um martelo.
Diferentemente de muitos contos, Pinóquio não é membro da realeza ou sequer da nobreza; muito pelo contrário, é uma marionete, filho de um carpinteiro, que precisa estudar para, no futuro, cumprir seus deveres dentro daquela sociedade.
Contudo, é primordial a existência de percalços nessa clássica jornada do herói para que o aprendizado seja concretizado. Não é por acaso que, no instante em que o protagonista sai do conforto de seu lar para “conhecer o mundo”, o primeiro a aparecer no caminho seja uma raposa (símbolo de esperteza) chamada ironicamente de João Honesto, que tem nas suas vestimentas a representação de sua índole: de longe seu figurino aparenta ser bastante elegante, mas nos detalhes se notam rasgões e remendos.
Além disso, o filme é certeiro ao gerar essa imagem do animal que destoa de seus atos e discursos. João Honesto, apesar de considerar a escola uma nobre instituição, parece não ter tido uma educação básica, já que pega o livro de cabeça para baixo e não sabe nem soletrar o nome da marionete.
Num primeiro momento, a raposa o troca por poucas moedas para o mestre de cerimônias Stromboli, mas depois, novamente por pura ganância, convence o personagem principal de que é alérgico (ao ponto de inventar termos médicos) e, por isso, necessita tirar férias na Ilha do Prazer — o que viria a ser um dos segmentos animados mais assustadores e que poderia pertencer a um filme de horror.
Essa ilha, que no conto é chamada de País dos Folguedos, é um dos locais no qual o personagem experimenta uma das muitas situações de medo e terror de que será vítima. No livro, a sequência na qual o boneco e seu amigo Pavio se convertem em asnos é descrita como um momento de dor, vergonha e desespero. O filme se utiliza de uma estratégia imagética para construir esse pavor diante da mutação (muito comum no cinema Expressionista Alemão) que é o uso de sombras.
Pensando em duas obras de F.W. Murnau, podemos entender que a proximidade de lançamento entre os títulos Nosferatu, de 1922, e Fausto, de 1926, e a animação de 1940, promoveu essa influência. A transformação sofrida pelo amigo, assim como uma sequência anterior na qual o Grilo descobre que as crianças que vivem na ilha se transformam em burros, são marcadas pela presença da sombra na parede que representa o medo do que não está sendo mostrado.
A imagem sem expressão facial ou corpórea (uma mancha sobre um fundo) é alongada ou expandida de maneira a imprimir a grandiosidade da ameaça. Podemos observar isso na imagem abaixo em que o vampiro Nosferatu encurrala sua vítima e o perigo pelo qual ela passa é expresso pela sombra distorcida que cobre seu corpo.
Outro elemento presente é a utilização de distorções faciais, bem comuns no cinema mudo, para ampliar o efeito dramático (característica herdada do teatro) que por vezes deixava as feições humanas quase sobrenaturais. No quadro a seguir, o personagem que alicia as crianças tem suas sobrancelhas arqueadas de maneira a imprimir uma feição demoníaca, assim como suas orelhas e cabelo que adquirem a forma de chifres.
O riso escancarado e os olhos abertos provocam a sensação de loucura e, com isso, a impressão de que a personagem é capaz de qualquer ato, por mais vil que ele seja. O mesmo está expresso na imagem abaixo, do ator Emmil Jannings, intérprete de Mephisto, o demônio que atormenta o jovem Fausto, na adaptação para os cinemas de 1926 da obra escrita por Johann Wolfgang von Goethe.
Toda a desgraça que recai é, de uma forma ou de outra, fruto da desobediência; da impossibilidade de cumprir a simples ordem de seu pai: ir à escola. Se na obra literária Pinóquio tem características mais acentuadas de um indivíduo arrogante que se recusa a crescer para aproveitar a vida, na animação o que lhe ocorre parece ser mais consequência de sua ingenuidade e baixa resistência em recusar conselhos de estranhos, mesmo que seu nariz cresça por causa das mentiras proferidas com a finalidade de evidenciar os traços de seus erros.
Embora existam certas facilidades para que a história avance (aparição da Fada numa situação de perigo e o pombo entregando o pergaminho que explica o paradeiro de Gepeto), no fim, não comprometem porque são soluções mirabolantes que condizem com a natureza fabulesca da narrativa em questão.
A base dramática dos quase 90 minutos de projeção depende da relação familiar entre pai e filho. Por mais que ambos compartilhem o mesmo ambiente apenas no início e no fim (o que faz o paralelo entre criador e criação ser bastante tímido), os riscos se estruturam por causa dessa dinâmica.
De um lado o homem dócil que se arrisca ao buscar, de modo incessante, pela sua cria — algo que o diferencia de muitos personagens masculinos da época por ter atributos quase maternos de cuidado e compreensão. Do outro o personagem principal, que tenta escapar dos obstáculos para, enfim, salvar a figura paterna que foi engolido por uma baleia.
Essa relação é tão intocável que, nem por um momento sequer, Pinóquio imagina que Gepeto possa tê-lo abandonado quando observa a casa vazia, como também, da mesma maneira, o carpinteiro não acredita que o sumiço do protagonista seja por conta de suas próprias escolhas.
Como um típico conto de fadas, somente quando o herói pratica o ato altruísta definitivo que ele é recompensado. E, nesse caso, é a catarse para purificar o passado repleto de equívocos, transformando, desse modo, Pinóquio num menino de verdade. Consolida-se, assim, de uma vez por todas, os princípios morais e éticos daquele universo que, obviamente, se espelha em nossa própria realidade.
Pinóquio pode até ser sido um fracasso de bilheteria e crítica na época, mas o tempo estabelece a maior das respostas e hoje possui o inegável status de clássico por ser um dos filmes mais criativos do estúdio no que se refere à sua linguagem audiovisual para transmitir diversas emoções.
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica
Título Original: Pinocchio
Ano: 1940
Direção: Norman Fergunson, T. Hee, Wilfred Jackson, Jack Kinney, Hamilton Luske, Bill Roberts e Ben Sharpsteen
Roteiro: Ted Sears, Otto Englander, Webb Smith, Joseph Sabo, Erdman Penner, Aurelius Battaglia e William Cottrell (adaptação do livro de Carlo Collodi)
Elenco: Dickie Jones, Cliff Edwards, Christian Rub, Walter Catlett, Evelyn Venable, Charles Judels, Frankie Darro, Clarence Nash
Trilha Sonora: Leigh Harline e Paul J. Smith