Passaporte | Tomboy
Identidade. O questionamento sobre si mesmo é certamente um dos maiores perrengues que qualquer pessoa passa, em especial na infância e adolescência. Seja por gênero, sexualidade ou simplesmente por personalidade ou traços físicos, quem nunca se questionou: “quem eu sou de verdade?” E a outra grande pergunta, não menos importante é: “eu me encaixo?”
São reflexões assim que Tomboy, filme de Céline Sciamma (Retrato de Uma Jovem em Chamas), propõe.
As pequenas Laure (Zoé Héran) e Jeanne (Malonn Lévana) se mudam com os pais para um novo apartamento durante o verão. Enquanto a caçula Jeanne, de 6 anos, adora bichinhos de pelúcia, saias de tutu e tudo o que é considerado “de menina”, Laure segue o caminho oposto: usa roupas “de menino”, tem o cabelo cortado bem curto e não dá a mínima para bonecas. É basicamente esse o comportamento que na língua inglesa se define como tomboy: uma menina que gosta de coisas “de menino” e se porta de tal forma. Talvez em português chamaríamos de “moleca”, embora o termo me pareça um tanto suave.
Ser tomboy não significa ser lésbica ou um menino trans. E também não significa não ser. Enquanto estilo, é algo bastante explorado pela moda e pela cultura pop. Pense Avril Lavigne em início de carreira, lá em 2002, com sua gravatinha, calças cargo e andando de skate. Mas na idade da personagem Laure, é uma busca por uma identidade que provavelmente ela mesma ainda não entende direito. E o filme não faz julgamentos, nem entrega respostas. Ao invés disso, Sciamma (que também é roteirista do longa) brinca com a androginia de Laure de uma forma sensível e que beira a genialidade.
Laure se apresenta aos novos amiguinhos do condomínio como Mickäel. E a partir daí, existe uma variedade de interpretações possíveis para a história que é contada.
A primeira seria encarar Mickäel como a verdadeira identidade. Laure seria um menino trans em busca de aceitação, vivendo uma fase cheia de descobertas. Outra opção é ver Laure como uma menina cis que simplesmente gosta do universo masculino e que teria criado o nome Mickäel também para buscar uma aceitação mais fácil por parte dos novos amigos (afinal, convenhamos que ser a diferente em uma turminha de crianças não é lá muito prazeroso).
Em uma trama que se preocupa menos com as definições de gênero e sexualidade e muito mais com a busca da identidade própria de uma forma mais ampla, é esperado, e até louvável, que o espectador se sinta em um estado bem reflexivo, principalmente após o filme. E o tom intimista de cada cena funciona realmente como um convite após o outro para essa reflexão.
Vemos, não só em Laure/Mickäel, mas até em Jeanne e nas outras crianças, a construção da imagem do que é ser homem ou mulher através de padrões de repetição. Com isso, se perpetua a lógica machista da menina que não pode jogar futebol, do menino que cospe no chão achando que isso é “másculo”, da imagem de que um garoto tem que ser forte a ponto de colocar medo nos outros e ser desejado por todas as garotas etc.
Outro grande trunfo de Tomboy é a relação de Laure/Mickäel e Jeanne. Apesar de tantas diferenças entre as duas crianças, o cuidado e proteção mútuos, a cumplicidade, e principalmente a pureza daquele amor fraterno é contagiante. É uma relação regada por um carinho que ultrapassa qualquer barreira e as atrizes mirins conseguem passar muita verdade para o espectador. Além disso, Jeanne é uma fofura só.
Mesmo com a ausência de trilha sonora e sem fazer das descobertas e desejos de Laure/Mickäel momentos de espetáculo, Tomboy é um filme que consegue chegar no coração de um público mais amplo do que se poderia imaginar. Afinal, o questionamento da identidade é um tema universal e a reflexão é válida para qualquer tipo de espectador. Mais um ponto para a talentosa diretora francesa.
Para assistir o filme no Telecine Play, é só clicar aqui.
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica:
Título original: Tomboy
Ano: 2011
Direção: Céline Sciamma
Roteiro: Céline Sciamma
Elenco: Zoé Héran, Malonn Lévana, Jeanne Disson, Sophie Cattani, Mathieu Demy
Fotografia: Crystel Fournier
Montagem: Julien Lacheray