Descubra um Clássico | A Filha de Ryan (1970)
Quando se pensa em experiências épicas na tela do cinema, o diretor mais famoso e bem sucedido nesse quesito, indiscutivelmente, é o britânico David Lean. Detentor de uma notável versatilidade ao ponto de dirigir filmes mais intimistas de adaptações de obras como as de Charles Dickens e Noël Coward, o artista (ganhador de duas estatuetas douradas já no meio da década de 1960) iria lançar seu quarto épico.
Situado no início do século XX, A Filha de Ryan conta a história de uma mulher que precisa lidar com seus sentimentos conflitantes numa pacata vila da Irlanda.
As constantes imagens das águas azuladas e os sons das ondas no extracampo da grande orla irlandesa representam muito bem essa vontade da protagonista (vivida por uma ingênua Sarah Miles) de querer viver numa liberdade plena, apesar do julgamento da conservadora sociedade em que está inserida.
A dinâmica com seu marido (Robert Mitchum num raro papel de um professor dócil e compreensivo) é, desde o começo, o pilar para toda a estrutura narrativa funcionar. Tanto o amor e desejo se fazem presentes nessa relação; e o melhor exemplo disso é quando a esposa pede para ele ficar sem camisa dentro da própria casa. Contudo, sofre um pouco pela rapidez dos acontecimentos no primeiro ato porque não constrói uma genuína sensação de amor entre aqueles dois — tal noção é também reforçada através do conveniente luto mencionado somente nos primeiros minutos da projeção.
Em contrapartida, a paixão fervorosa direcionada ao general inglês é insuficiente por não dar a impressão de verossimilhança. São mais de 3 horas de duração, mas vemos os dois dividirem o mesmo recinto (por mais que alguns minutos) só duas vezes. O militar, mesmo com essa suposta importância que faz toda a trama avançar, parece deslocado. Qual é o tamanho do afeto por sua esposa a ponto de cometer o adultério? Já seu grande trauma de guerra, algo que não precisa ser respondido por ser apenas um mero contexto, é exposto em algumas cenas da maneira mais óbvia possível. No fim, não sabemos quase nada desse homem introspectivo e marcado (literalmente) pelos horrores provocados no campo de batalha.
Diferentemente de Doutor Jivago, todo o arco dramático para comentar sobre a situação política da época nessa obra de 1970 é pouco inspirado, já que o espectador não entende completamente as motivações dos membros daquela comunidade, criando, por consequência, vários personagens unidimensionais — incluindo o mudo do vilarejo interpretado por John Mills, cuja função principal beira o caricato por ser um simples alívio cômico.
O que ocorre no terceiro ato dá a impressão de algo inorgânico por não haver a urgência necessária para tal, porém, ainda possui essa mensagem esperançosa, onde as figuras de maior destaque (o pai, o padre, o marido) na existência daquela mulher são indivíduos que praticam a empatia, recusando-se a julgar suas escolhas.
Não há uma crítica contundente sobre o patriarcado porque a obra não está tão interessada nessas implicações, mas possui uma espécie de romantização das bases tradicionalistas sociais para manter a ordem e paz. Dentro da perspectiva da narrativa (que, nas devidas proporções, encontra paralelos com Tess – Uma Lição de Vida) é uma coisa quase imutável, como se não houvesse jeito da protagonista escapar das consequências de suas ações.
Essa tendência religiosa que o filme estabelece como elemento de interação, compreensão e salvação pode ser notada na relação estreita entre a personagem principal e o padre, excluindo a figura paterna de qualquer informação íntima de sua vida ou como alguém que possa ajudar nos momentos de dúvidas e receios.
Apesar desses pontos cruciais mencionados serem poucos desenvolvidos e a extensa duração não ser totalmente bem aproveitada, Lean não perde sua típica maestria (e ganha imponência com a fotografia vencedora do Oscar de Freddie Young e a subestimadíssima trilha sonora composta por Maurice Jarre) em conseguir transmitir alguns desses sentimentos nesse gigante escopo.
É de uma grande sensibilidade a cena do ato sexual praticado fora do casamento ao colocar Rose, pela primeira e única vez, com algumas peças de roupas na cor vermelha para simbolizar o pecado aos olhos no âmbito religioso, mas também o desejo que nutre por aquele homem.
Sendo assim, sem quase nenhum diálogo nesses segmentos, fica evidente o contraponto: enquanto o sexo, após se casar, é realizado no interior do quarto com figurinos brancos para manifestar a latente inocência, fora do casamento é ao ar livre, repleta de cores vívidas, chegando a demonstrar (mais de uma vez) o céu parcialmente encoberto pelas árvores como símbolo dessa eterna busca pela felicidade.
E é na jornada feita de escolhas, erros e acertos que A Filha de Ryan, de uma forma ou de outra, se propõe a estudar. Após a desgraça, não existe final feliz propriamente dito — o que há é a ideia de uma segunda chance sugerida pelo padre como instrumento para sintetizar o maior princípio cristão de todos: o perdão.
Depois da péssima recepção dos críticos, David Lean (que foi indicado ao BAFTA e ao Sindicato dos Diretores pelo trabalho) ficou mais de uma década afastado da indústria cinematográfica porque começou a duvidar de sua própria competência. Para um mestre no artifício como ele, seria bastante melancólico sua carreira terminar assim. Felizmente, sua resposta veio em 1984, sendo aclamado tanto pela crítica quanto pelo público com Passagem para a Índia, onde iria colecionar mais três indicações (direção, roteiro e montagem) na sua brilhante carreira.
Nota: ★★★✰✰
Ficha técnica
Nome Original: Ryan’s Daughter
Ano: 1970
Direção: David Lean
Roteiro: Robert Bolt
Elenco: Sarah Miles, Robert Mitchum, Christopher Jones, Trevor Howard, John Mills, Leo McKern, Barry Foster, Marie Kean
Montagem: Norman Savage
Fotografia: Freddie Young
Trilha Sonora: Maurice Jarre