No Prime Video | Mentira Incondicional (The Lie)

Mentira Incondicional (The Lie), novo filme dirigido pela canadense Veena Sud, produzido pela Amazon e pela famosa produtora de filmes de horror e suspense, Blumhouse, estreou nessa quinta no Prime Video. Na trama, Joey King interpreta Kayla, uma jovem de 15 anos que tem problemas com os pais. Durante uma viagem com seu pai, Jay (Peter Sarsgaard) até um retiro, Kayla comete um crime terrível. Agora Jay, junto da mãe de sua filha e ex-esposa, Rebecca (Mireille Enos), deve tomar várias decisões que põem em risco a liberdade e a própria vida da filha.

Remake do filme alemão We Monsters, de 2015, Mentira Incondicional parte de uma premissa excelente para estudar como cada um de nós age para proteger quem mais amamos, mesmo que essa pessoa aparente estar errada. O filme  trata, em seu núcleo temático, do amor paterno e materno por um filho e como isso pode ser nebuloso, dado a situação certa.

O filme me lembra perfeitamente Fargo, dos irmãos Coen, por todo o background gélido, atuações que se destravam lentamente e de dentro para fora, e por ser, essencialmente, uma obra que busca entender questões obscuras da humanidade. A grande diferença, além da qualidade bem distinta dos realizadores, está no fato de que Fargo tem um ar de ironia o tempo inteiro, quase como se fosse uma observação crítica acerca de seres humanos que vão além das questões éticas e morais de uma sociedade por interesses, enquanto que Mentira Incondicional se preocupa muito mais com os desdobramentos lógicos e emocionais da trama, se levando muito a sério o tempo inteiro. Isso é o que traz o filme de Veena Sud para o abismo em determinado momento.

Apesar de ser verossímil durante boa parte de sua projeção, Veena Sud, enquanto roteirista, confunde descontrole emocional com burrice em alguns momentos da trama. Vários personagens acabam por tomar decisões altamente questionáveis, algo que me parece muito mais um dispositivo narrativo para que a trama prossiga do que necessariamente um comentário acerca do tema razão vs. emoção.

The Lie

Em uma trama tão fechada em sentimentos e com poucas ações e locações, é necessário que desdobramentos, que mantenham constante o interesse do espectador, aconteçam durante o segundo ato do roteiro, para que no terceiro ato tudo exploda emocionalmente e a catarse do espectador seja devidamente atingida. A roteirista é bem sucedida nisso em boa parte do filme, pois várias revelações que a trama vai dando de fato te fazem questionar os acontecimentos, te coloca ora contra os pais, ora contra a filha, deslocando a todo momento o que você sente em relação a todos eles.

O grande problema vem em uma revelação final que é absurda em vários níveis e exige que o espectador tenha uma suspensão de descrença acima do habitual para simplesmente aceitar o que foi proposto. Isso poderia até ser aceitável, caso Veena Sud tivesse de fato desenvolvido no segundo ato da história alguns traços de um dos personagens, o que ela apenas faz superficialmente. É impossível não se sentir um tanto aborrecido após o filme, pois tudo parecia estar sendo relativamente bem construído, até que uma simples virada mata tudo em minutos.

Do ponto de vista de construção visual, a diretora se sai bem. As escalas do plano são bem utilizadas, com cada momento de tensão se elevando em planos fechados e muitos que causam uma certa claustrofobia. Muitas sombras, contraluzes e formas são bem exploradas aqui também, tornando explicita a atmosfera nebulosa da narrativa, que sempre esconde onde cada personagem está, quem ele é e porque está ali.

Os planos gerais, abertos, revelam montanhas gélidas e atmosferas sombrias, com o uso de um tom roseado quando a diretora explora o amor dos pais pela filha, e tons azulados e verdes em momentos de discussão intensa ou mesmo de confronto. Entre eles, surge um fino tom de roxo, a cor da morte no cinema, que rodeia todos aqueles personagens, principalmente em momentos de maior tensão e suspense.

The Lie

A cineasta também é hábil em explorar a separação emocional entre cada um daqueles personagens. Há um plano, bem no início do filme, em que a garota Kayla chora de maneira meio tímida, enquanto no fundo do plano sua mãe se despede de maneira afetuosa de um novo companheiro, que não é seu pai. Isso evidencia muito bem o problema da filha com a mãe e como ambas se veem afastadas uma da outra.

Outros exemplos de mise-en-scène (trabalho de construção da narrativa) que deixam clara a intenção de separação emocional: quando Jay e a ex-esposa Rebecca conversam entre si sobre a situação da menina no banheiro. Ali vemos a mulher deslocada do quadro para a direita, enquanto o homem aparece no outro extremo por meio de um espelho. Ambos são separados por uma linha causada pelo box do próprio banheiro; quando Jay está ouvindo uma conversa no andar de cima da casa e o plano o mostra iluminado por uma luz azul que o atinge, enquanto sua esposa se encontra no andar de baixo bem iluminada pelas luzes da casa.

A diretora não pensou em planos como esses gratuitamente. Ela está, com sua construção visual, deixando explícito para nós que aqueles personagens estão juntos por conta da situação de risco que todos vivem. Porém, o mais relevante para os pais é realmente ver sua filha segura, mais do que qualquer problema pessoal que um tenha com o outro. Isso é levado até as últimas consequências, em desdobramentos cada vez mais sombrios. Pena que apesar de todos os esforços, é extremamente difícil de engolir o rumo final da trama.

Veena Sud também consegue compreender que, em diversos momentos de sua trama, deve evitar um trabalho extensivo de estilo e focar mais nos diálogos e nos potentes momentos proporcionados por Peter Sarsgaard, Mireille Enos e Joey King. Todos os seus personagens possuem uma certa complexidade, com dilemas extremamente difíceis e muitos conflitos internos. Os veteranos tiram isso de letra. Quem impressiona mais nesse quesito é Joey King, uma atriz que despontou com a série igualmente perturbada The Act. A menina tem toda uma gama de emoções e precisa sempre externá-las, sendo a personagem mais expansiva de todo o filme. A cineasta consegue também ser hábil em dirigir a menina, além de todo o seu elenco coadjuvante, tirando o melhor de todos eles.

Mentira Incondicional (The Lie) é, portanto, um filme que segue bem por dois terços, apesar de certas inconsistências em seu texto, mas que derrapa muito feio em uma reviravolta infantil e totalmente avessa ao realismo duro que o filme imprime. Ao menos enquanto exercício de gênero ou mesmo de como uma premissa interessante pode ser explorada, o filme funciona a contento. Assim a Blumhouse segue, entre projetos excelentes e aqueles que mostram potencial, mas que ficam no meio do caminho.

Nota:★★✰✰✰

Título Original: The Lie

Ano: 2018

Direção: Veena Sud

Roteiro: Veena Sud

Elenco: Peter Sarsgaard, Mireille Enos, Joey King, Cas Anvar, Patti King, Devery Jacobs

Fotografia: Peter Wunstorf

Trilha Sonora: Tamar-kali

Montagem: Philip Fowler

Figurino: Leslie Kavanagh

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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