Na Netflix | Mank

Cidadão Kane é um dos melhores filmes de todos os tempos. A obra consegue ser uma rara mistura de clássico e contemporâneo, ágil, deslocada no tempo e no espaço, explorando a distância entre os personagens com profundidade de campo, usando as sombras pra causar dúvida e contradição, inserindo um mistério que permanece no imaginário popular até hoje. O que é rosebud, afinal?

Para além das proezas técnicas de Orson Welles, o roteiro de Herman J. Mankiewicz chama muito a atenção. É justamente na história de sua construção que David Fincher foca em sua nova obra, Mank, nome pelo qual Mankiewicz era conhecido. O diretor persegue cada passo dado pelo roteirista entre os anos 1930 e 1940, trazendo a tela certas questões que podem te fazer entender o que é rosebud, que não é somente um trenó infantil.

Mank é um anti-herói; alguém de bom coração, mas com inúmeras falhas que o fazem se exceder ou mesmo maltratar pessoas que o amam. Isso fica claríssimo nas cenas em que o protagonista divide tela com sua esposa que sempre o apoia e cuida dele, mas que é jocosamente chamada de “Poor Sara” (“pobre Sara“) pelo roteirista fora do ambiente familiar.

Além de desconsiderar a esposa, o personagem principal tem um vício em apostas e bebe como se não houvesse amanhã. Para Fincher, todas essas características encaixam num de seus arquétipos favoritos de personagem: aquele que se demonstra reativo e desequilibrado, que constantemente sofre perante às injustiças do meio em que se encontra, que fazem ele por seus ideais na frente de qualquer outra coisa e agir em prol deles, independentemente se vão beneficiar outro alguém.

O egocentrismo (característica bem comum nos filmes do cineasta) volta com força aqui porque não é somente Mank que sofre desse mal, mas praticamente todos os personagens. A Hollywood clássica é um terreno muito fértil para isso, pois além de ter sido parte primordial da economia norte americana durante os períodos da crise de 1929, foi também parte essencial da expansão da cultura estadunidense por todo o mundo e do “American Way of Life”. É em Hollywood que o ego inflama, sonhos se realizam ou se destroem, politicagem acontece em cada esquina e que qualquer poderoso pode te fazer de peão segundo seus próprios interesses.

A crítica aos estúdios de Hollywood e a quem o comanda está presente por meio de uma figura central: Louis B. Mayer, um dos chefões dos estúdios MGM. Mayer é dissimulado e só pensa em seus interesses, passando por cima de qualquer um para conseguir concretizá-los. Várias das melhores cenas do filme pertencem a ele com a finalidade de desmascarar e desconstruir sua figura.

Existe uma cena bem específica em que um dos braços direitos do personagem morre. Ele chora durante o velório, com o diretor mostrando bem claramente um lenço branco. Depois da cerimônia, o chefão entra em seu carro de luxo e enquanto sobe o vidro, joga seu lenço fora sem qualquer pudor. Uma metáfora simples, porém, muito ilustrativa de quem são esses grandes executivos.

Mayer é, porém, um mero capacho de William Randolph Hearst. O grande magnata da comunicação, dono de diversos jornais e um dos mais influentes empresários americanos do século XX, representa a busca dos poderosos por poder e controle. O diretor escolhe somente evidenciá-lo em algumas cenas, mas sua presença é notória durante o filme inteiro. Hearst, na busca por poder, distorce fatos à seu bel prazer e, com a ajuda da MGM, cria propagandas manipulativas para forçar as pessoas a atenderem seus desejos. O filme narra um fato que, inclusive, mexe com a vida de toda a Califórnia e é sentido fortemente.

É exatamente nesse momento que o cineasta se aproxima de seus thrillers policiais como Seven: Os Sete Crimes Capitais e da paranoia de Clube da Luta. Mank, como um homem de convicções fortes, vê seu mundo em colapso enquanto apenas pode observar as peças do jogo sendo movidas à seu redor. Aqui, Fincher pesa a mão no suspense, utilizando não só de artifícios de montagem, mas também escondendo informações cruciais por meio do roteiro de Jack Fincher (seu próprio pai), que vem à tona posteriormente da pior forma possível.

O último (mas não menos importante) vilão do filme é Orson Welles e aqui tenho a clara sensação que letras minúsculas não exprimem o que o cineasta pensa sobre ele. VILÃO é, portanto, mais apropriado nesse caso. Essa brincadeirinha com a hipérbole representa bem como Fincher trabalha o famoso diretor de Cidadão Kane.

O artista mostra Welles sempre desfocado, envolto por sombras e com uma entonação de voz maligna de desenho animado. As poucas vezes que o personagem aparece com seu rosto limpo são em breves momentos em que ele convence Mank a escrever o roteiro de Cidadão Kane sobre William Hearst e também no clímax, onde (metaforicamente) o personagem “mostra o seu verdadeiro rosto” ao público.

Isso faz muito sentido porque Welles na vida real era notoriamente alguém de muito poder de convencimento. Não é à toa que ele conseguiu total liberdade criativa na RKO Pictures, num período em que isso era impensável em Hollywood.

Nos extras do blu-ray da obra-prima de 1941, há uma entrevista com o brilhante montador Robert Wise em que ele conta que no encontro com os grandes chefões da RKO e seus advogados para mostrar o filme (que já era controverso antes mesmo de seu lançamento), Welles foi convencendo a todos presentes na sala de que o filme que tinha nas mãos deveria ser lançado.

A leitura de David Fincher sobre o personagem em seu filme é de alguém que não estava interessado em escrever o roteiro com Mank, mas sim de ordenar e de ter os louros do trabalho somente para si. Welles aqui é visto como esse símbolo de autor prepotente e ganancioso, “subindo nas costas” de seus colaboradores e amando ser chamado de gênio o tempo inteiro. É a terceira parte da tríade de vilões e das críticas pessoais de Fincher à indústria que engloba estúdios de Hollywood, veículos de comunicação e autores gananciosos.

Por fim, Marion Davies é a última personagem chave dessa história. Amiga pessoal de Mank e um amor platônico seu, Davies na vida real tinha um caso com William Hearst. Ela é retratada no filme com uma certa leveza, uma iluminação na vida do protagonista. O cineasta, para ilustrar isso, constrói a primeira interação entre os dois em uma estrutura alta, com ambos acima do restante em tela e um refletor posicionado neles. Aqui é também onde o diretor traz algo de natureza mais cômica, quase se aproximando de uma comédia romântica ou de algo que Federico Fellini fez em A Doce Vida.

O caso de Davies com Hearst nunca é mostrado explicitamente, mas o fato de ambos estarem sempre juntos quase que o tempo inteiro, ela se dirigir a ele com alcunhas carinhosas e fazer tudo que ele queria deixa isso muito claro.

Esse fato fez Mank aceitar a tarefa insana de escrever Cidadão Kane em 60 dias. O roteirista parecia farto com aquele mundo sujo e decrépito, com suas mágoas o conduzindo a um delírio que viria a se transformar no grande roteiro de um dos melhores filmes de todos os tempos, como disse no primeiro parágrafo desse texto.

David Fincher, detalhista em toda a carreira, cria de maneira perfeita paralelos com a obra da década de 1940, entrando fundo na mente do errático roteirista da produção. É muito interessante notar, por exemplo, que vários personagens do filme de Orson Welles fazem parte da realidade. Estão lá William Hearst como Charles Foster Kane, Marion Davies como Susan, Louis Mayer como o Sr. Bernstein e o próprio Mank como Leland.

Cada um desses personagens tem paralelos com personagens da vida do roteirista. Kane é o magnata da comunicação que precisa de poder a todo custo e do amor das pessoas para si, assim como William Hearst. Susan é a amante-artista de Kane, que faz tudo o que o marido manda, assim como Davies. Sr. Bernstein é o “lambe botas” de Kane, sempre do lado do patrão em qualquer ocasião, cego aos seus defeitos, como Mayer.

E, por fim, Leland, amigo de Kane, mas que enxerga todo o mal que ele vem causando a si e aos outros, a voz da consciência, como Mank se mostra, principalmente no clímax do filme.

Até mesmo detalhes menores são abordados com maestria e conectados. Seja os fade-outs de Welles que mantém elementos durante muito tempo na tela para depois cortar para outros ou mesmo o uso das sombras e da luz como metáforas, Fincher absorve muito bem tudo isso e ressignifica para sua obra. Até mesmo o Xanadu (a grande mansão de Kane) aparece aqui numa das cenas mais agradáveis em termos de diálogo e de tom, explorando aquilo que vemos em poucos segundos no filme de Welles.

Assim como disse mais cedo, todas essas questões te fazem entender melhor o que é de fato o rosebud. Para Welles, é o trenó da infância de Kane. Para muitos outros estudiosos, simboliza a genitália de Marion Davies. Para mim, é o amor enterrado de Mank pela atriz, pois é a última palavra que Kane pronuncia antes de morrer e também um objeto de afeto jogado na fogueira. Isso se confunde com a própria trajetória do roteirista que não possui tem controle de seu destino, que não se contenta com o amor que tem e com as pessoas que o amam.

Para além de tudo o que já comentei (parabéns para você que chegou até aqui!), daqui para frente vou falar algumas coisas óbvias. A primeira delas é que Mank é primoroso em termos técnicos porque é visualmente pensado para ser assistido como um filme daquela época, além dos elementos de linguagem semelhantes ao de Cidadão Kane. O filme é um deleite em sua impecável construção de imagens e significados.

Até mesmo pequenos elementos de filmes antigos, como as pequenas falhas na imagem que podiam ser vistas nos projetores analógicos, são reproduzidos com fidelidade, além da trilha muito familiar para a época de Trent Raznor e Atticus Ross, dois colaboradores de longa data de Fincher. Também familiares são os letreiros e a apresentação, tudo para de fato te fazer sentir estar vendo um filme da Hollywood clássica, como também a pomposa direção de arte, recriando a Califórnia dos anos 1930 de maneira arrebatadora.

A montagem, porém, merece um parágrafo à parte. Kirk Baxter é simplesmente brilhante, tal qual foi Robert Wise em Cidadão Kane. Ambos os filmes, em questão de estrutura, são semelhantes, pois eles negam acontecimentos cronológicos e se deslocam no tempo com muita facilidade em diversos flashbacks que sempre apresentam algo novo para a narrativa, apesar de Mank ser até mais comportado nesse aspecto.

Apesar dessa dificuldade de construção, Baxter monta cada peça do quebra cabeça de forma a potencializar a anterior, culminando em um clímax que se passa não apenas no presente, mas também no passado, em um caso muito curioso de montagem paralela.

Confesso que Gary Oldman no papel do protagonista não me impressionou. O estilo expansivo de atuação dele continua aqui, então não me soou como um papel muito diferente dos seus habituais, mas devo concordar que o controle do ator é muito grande, já que ele alterna entre diversos estados de espírito de maneira excelente, tornando o trabalho de transição de gêneros de David Fincher mais fácil.

Todo o restante do elenco está excelente, com destaque para Amanda Seyfried como Marion Davies no papel (talvez) mais relevante de sua carreira. A atriz aqui é adorável e tem uma química forte com Oldman, sendo um dos pilares do filme. Os dois são fortes candidatos em suas categorias de atuação no Oscar 2021, portanto, olho neles.

A única questão que me incomoda é que o filme não é nada acessível. Se você, por ventura, for ver o filme sem algumas das informações que dei aqui nesse texto ou mesmo sem conhecer os bastidores da produção de Cidadão Kane, vai ser uma experiência muito confusa, com um mar de personagens que aparecem a todo instante e que o roteirista não se preocupa em explicar claramente para você quem são eles. Do ponto de vista da narrativa em si, apenas uma personagem me parece ser desenvolvida de modo meio protocolar, sem qualquer interesse em aprofundá-la.

Mank, o grande e esperado retorno de David Fincher depois de 6 anos, é uma carta aberta a tudo que o diretor detesta, além de ser um projeto muito pessoal em crenças e mesmo em execução, pois o roteiro é de seu pai. Apesar de ser uma engenhosa e desafiadora obra baseada em fatos num escopo cínico sobre a Hollywood clássica, é sempre bom termos cuidado em tomar tudo o que está sendo narrado como verdade absoluta.

Esse é o olhar particular do realizador e como tal deve ser tratado assim. Evidências histórias tem outro peso e outra medida. De qualquer forma, é um presente para os cinéfilos nesse 2020 tão desastroso e um dos favoritos ao Oscar do ano que vem (de montagem eu cravo, anotem aí), portanto, não percam sua estreia na Netflix no dia 4 de dezembro.

Nota: ★★★★★

 

Ficha Técnica

Título Original: Mank

Ano: 2020

Direção: David Fincher

Roteiro: Jack Fincher

Elenco: Gary Oldman, Amanda Seyfried, Lily Collins, Tuppance Middleton, Tom Burke, Charles Dance, Arliss Howard

Fotografia: Erik Messerschmidt

Trilha Sonora: Trent Raznor, Atticus Ross

Montagem: Kirk Baxter

Figurino: Trish Summerville

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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