Na Netflix | A Voz Suprema do Blues

 

“Não se importam comigo. Só querem a minha voz.”

 

Na história da música, artistas negras e negros tiveram seus legados e importância apagados, seus talentos explorados e suas canções e composições apropriadas por brancos. O rock, gênero que ganhou popularidade nos anos 1950 com Elvis Presley, é uma criação negra oriunda do jazz, blues, funk, folk, gospel e soul, tendo expoentes como Sista Rosetta Sharpe – considerada a “Mãe do Rock” –, Little Richard, Chuck Berry, entre outras e outros. Esses artistas vanguardistas negros tiveram seus nomes e importância aos poucos esquecidos, enquanto artistas brancos faziam cada vez mais sucesso. E esse apagamento não se restringe apenas ao rock, mas também ao R&B, por exemplo, cuja apropriação e exploração por brancos foi explorada no filme vencedor do Oscar Dreamgirls – Em Busca de um Sonho.

Adaptado da peça Ma Rainey’s Black Bottom escrita por August Wilson, A Voz Suprema do Blues acompanha Ma Rainey (Viola Davis) – cantora de blues de grande sucesso dos anos 1920 – em meio às tensões presentes na gravação de seu álbum, cuja gerência branca está determinada a controlar a incontrolável “Mãe do Blues” e também os conflitos gerados entre a artista e seu ambicioso trompetista Levee (Chadwick Boseman, em seu último papel no cinema).

A Voz Suprema do Blues

Situado em um dia quente de 1927 na cidade de Chicago, o filme, além de tocar em temas como raça, arte e religião, discute a exploração histórica de artistas negros por brancos através de dois personagens distintos e conscientes de que os empresários e produtores só irão aceitá-los enquanto estiverem gerando dinheiro.

O primeiro, de uma cantora muito bem sucedida que já conhece o funcionamento da indústria pela sua experiência e que aprendeu a não permitir que a controlem, buscando sempre estar no comando e que as coisas estejam da forma que quer enquanto possuir esse poder. O segundo, um trompetista repleto de ambição que sonha em gravar suas músicas com sua futura banda e entende o mal necessário que é bajular os brancos num primeiro momento para, depois de estabelecido, chegar a sua hora de comandar.

A Voz Suprema do Blues

A princípio, Ma Rainey é introduzida como uma pessoa arrogante, egocêntrica, controladora e mal-humorada. No entanto, em um monólogo poderoso interpretado com maestria por Viola Davis, toda essa imagem é desconstruída ao entendermos o porquê dela agir assim. Ao longo do filme, presenciamos que a artista tem sua própria autonomia e sabe seu valor, possuindo-o intensamente, fora o carinho que tem pela sua banda, que a respeita e também por seu sobrinho, que conta com seu apoio e também serve como ponte entre a personagem e sua família.

Já Levee inicialmente é apresentado como alguém que aparenta ter medo dos brancos, mas também, após um monólogo entregue por Chadwick Boseman com grande intensidade, potência e talento, temos acesso a um acontecimento traumático da infância do personagem que nos faz compreender totalmente as intenções e ambições do trompetista. Tanto Davis quanto Boseman demonstram paixão pelo material original e nos entregam duas das melhores atuações do ano, especialmente o segundo em (talvez) seu melhor trabalho da carreira e que é, infelizmente, o último em vida no cinema.

A Voz Suprema do Blues

Contudo, por originalmente ser uma peça de teatro, A Voz Suprema do Blues não faz uma bem sucedida transição da linguagem teatral para a linguagem cinematográfica. O que funciona em um, não necessariamente funciona em outro. Algo semelhante aconteceu na adaptação de outra peça de August Wilson para os cinemas: Um Limite Entre Nós, dirigido por Denzel Washington e protagonizado por ele e Viola Davis. O filme também sofreu ao fazer essa passagem de linguagens, apesar dos excelentes trabalhos de atuação de seus dois atores protagonistas.

Além disso, a insistência do diretor George C. Wolfe (premiado e mais conhecido por seus trabalhos no teatro) em utilizar planos sem cortes focados em longos monólogos ou quando acompanha seus personagens se movimentando pelo cenário, acaba transmitindo a ideia de que estamos assistindo uma peça teatral sendo filmada. E os artifícios usados para tentar fazer a transição da peça para as telas, como cenas fora do estúdio ou o calor da cidade exposto através do uso da poeira e tons amarelados, não são suficientes para reduzir essa impressão.

Outro problema é a falta de sintonia de Viola Davis com as versões das canções de Ma Rainey gravadas pela cantora Maxayn Lewis para o longa. Há algo entre a voz presente nas músicas e a interpretação de Davis que não se encaixa, tornando a experiência pouco natural e escancarando a dublagem. Isso gera uma discrepância visível quando ouvimos a personagem performar as canções.

A Voz Suprema do Blues

Tecnicamente impecável e com excelentes atuações de Viola Davis e Chadwick Boseman, A Voz Suprema do Blues encontra sua potência ao falar sobre a exploração do talento de negras e negros pelos brancos, além de servir como uma forma de apresentar a importância de Ma Rainey, uma das primeiras cantoras de blues profissionais afro-americanas e pertencente à primeira geração de cantores de blues a gravar em estúdio. Porém, tem seu “calcanhar de Aquiles” a sua não tão bem sucedida transição de peça de teatro para filme, mantendo algumas características que certamente funcionam em cima de um palco, mas que no cinema não possuem o mesmo impacto.

Que o legado de Ma Rainey seja mais valorizado e conhecido por todas e todos.

Para assistir o filme na Netflix, clique aqui.

E para conferir as previsões do Oscar 2021, clique aqui!

Nota: ★★★✰✰

 

Ficha Técnica

Título Original: Ma Rainey’s Black Bottom

Ano: 2020

Direção: George C. Wolfe

Roteiro: Ruben Santiago-Hudson

Elenco: Viola Davis, Chadwick Boseman, Glynn Turman, Colman Domingo, Michael Potts

Fotografia: Tobias A. Schliessler

Montagem: Andrew Mondshein

Trilha Sonora: Branford Marsalis

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Vinicius Dias

Carioca graduado em Relações Internacionais, não sabe muito bem quando começou a sua paixão pela Sétima Arte, mas lembra de ter visto Tarzan (1999) no cinema três vezes e de ter sua fita dupla de Titanic (1997) confiscada pela sua mãe por assistir ao filme mais vezes do que deveria. Não gosta de chocolate, café e Coca-Cola, mas é apaixonado por Madonna, Kylie Minogue e Stanley Kubrick.

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