Descubra um Clássico | A Marca da Maldade (1958)
Muitos consideram Cidadão Kane não apenas o mais importante filme de todos os tempos, mas também a principal influência para a criação do já extinto subgênero chamado noir. E chega a ser uma feliz coincidência que o último grande exemplo de uma obra inserida nessa estrutura clássica policial seja dirigido pelo gênio Orson Welles.
A Marca da Maldade sofreu alguns problemas pelo fato dos produtores da Universal cortarem muitas cenas subversivas e procederem a uma montagem mais convencional para que a experiência fosse mais agradável para o público.
Além de ter escrito um memorando de quase 60 páginas, em certas entrevistas Welles deixou claro o descontentamento por não ter esse completo controle artístico, porém, compreendia como a indústria funcionava. Somente em 1998 que a versão que se alinhava com as ideias do criador foi finalmente concretizada e é justamente essa que está sendo analisada.
A obra de 1958 possui vários elementos típicos do noir, desde a brilhante fotografia de Russell Metty que abusa das sombras com intuito de revelar a moralidade (e a falta dela) daqueles indivíduos até o frutífero debate sobre o limite do que é aceitável para que a justiça seja feita.
Em contrapartida, o filme “foge” de algumas regras do subgênero — algo que representa muito bem essa inerente vontade de inovar do artista tanto no aspecto visual quanto narrativo, já que ele tinha realizado outros noir na década de 1940.
No lugar de ter uma femme fatale e um protagonista detentor de uma integridade ambígua, aqui se vê um casal (nada menos que Charlton Heston e Janet Leigh) com virtudes intactas. Contudo, ao ver que sua esposa sofre as consequências por ele ser um policial honesto, o personagem flerta várias vezes com o excesso para encontrá-la e salvá-la.
A frase “Eu não sou um policial. Eu sou um marido!” expõe muito bem essa noção que até as melhores das pessoas, com as melhores das intenções, num dia em que nada dá certo, pode estar a segundos de cometer algo que irá se arrepender depois. O homem que esquece os princípios basilares para agir do modo mais animalesco possível. É a mensagem de Welles sobre a natureza volátil e complexa do ser humano.
E o diretor-roteirista (que também atua como o corrupto chefe policial da cidade) estabelece essa dualidade entre o correto e o errado simplesmente com as imagens nos primeiros minutos de projeção. Ao filmar o contraponto ético da história através do contra-plongée (quando a câmera está posicionada de baixo para cima), não é necessário nenhum diálogo para explicar quem é aquele homem.
Gordo, velho (a ótima maquiagem o faz parecer estar com mais de 60 anos), preconceituoso e com problemas para andar a ponto de ter que usar uma bengala, tal escolha tem a intenção de engrandecer ainda mais um personagem completamente único na história.
Como se não bastasse, utiliza também o plongée (quando a câmera está de cima pra baixo) para demonstrar a força bruta que exerce sobre algumas pessoas. O domínio tanto institucional quanto físico é estabelecido por conta da lógica cênica. O melhor exemplo é quando ele assassina o líder provisório da gangue mexicana num segmento digno de filmes de terror ao praticamente torná-lo num monstro, onde as sombras daquele quarto anunciam a tragédia.
Antes de qualquer ato violento, a construção de tensão se deve pela brilhante mise-en-scène. Variando entre as duas posições da câmera já mencionadas para evidenciar a fragilidade de um e virilidade de outro, o olhar de medo do traficante vai se intensificando e as luzes que invadem o recinto para depois desaparecer por completo (algo que encontra explicação na própria diegese por se tratar do letreiro iluminado do hotel) são responsáveis por essas sensações.
Todo esse apuro técnico de Welles com a câmera já se nota no plano-sequência inicial, onde o espectador presencia uma bomba ser colocada no porta-malas de um carro e ver esse mesmo veículo ser dirigido por minutos, desenvolvendo-se, dessa maneira, um sufoco emocional por não sabermos quando ela será explodida.
Além disso, o constante uso de travellings e da profundidade de campo fazem com que a linguagem narrativa esteja mais próxima da realidade, gerando um comprometimento maior da plateia com a história — escolhas estas que o tornaram visionário por querer se afastar de um cinema mais tradicional.
A trama se passa na fronteira dos Estados Unidos com o México e, de uma forma ou de outra, isso simboliza muito bem toda a questão moral que quer explorar. A discussão sobre onde o crime foi cometido para que a jurisdição seja definida encontra ecos na essência dos atos seguintes.
Apesar dessa roupagem comum entre mocinho e vilão, nada é tão simples assim. E a maior ironia em relação a isso é exatamente o espectador tomar conhecimento (na última cena) que o antagonista, ainda que tenha incriminado o jovem mexicano de maneira ilegal, estava certo sobre quem tinha cometido o atentado.
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica
Nome Original: Touch of Evil
Ano: 1958
Direção: Orson Welles
Roteiro: Orson Welles (baseado no livro escrito por Whit Masterson)
Elenco: Charlton Heston, Janet Leigh, Orson Welles, Joseph Calleia, Akim Tamiroff, Ray Collins, Joanna Moore, Victor Millan
Montagem: Walter Murch (versão de 1998), Aaron Stell e Virgil W. Vogel (ambos para a versão original de 1958)
Trilha Sonora: Henry Macini