Brazuca | Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou
Como lidar com a perda de uma pessoa querida? Essa é uma das questões que ninguém soube explicar ainda. Uns tentam viver um dia de cada vez, outros tentam deixar a memória impressa, seja por meio de fotografias, àquelas antigas de álbuns de família, seja por meio da arte, de músicas que expressam a dor e o sofrimento, ou por meio de filmes que tentam manter a essência do amado intacta.
Em 2020, dois filmes se destacaram por encararem a morte de frente. O primeiro fica como recomendação e se chama Dick Johnson is Dead, um tocante documentário de Kirsten Johnson sobre a iminente perda de memória do pai e uma carta de amor para deixá-lo eternizado em seu trabalho. O segundo é o contemplado por este texto, Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou.
O filme de Bárbara Paz, já abre com uma imagem desfocada que logo se revela um soro caindo lentamente. Os dizeres “Você é um leão” emanam ao fundo, referência direta ao fato de Héctor Babenco, o lendário cineasta argentino naturalizado brasileiro, se recusar a morrer depois de diversos procedimentos de retirada de cânceres durante a sua turbulenta vida. A bela fotografia em preto e branco revela um quarto com vista para o mar, com uma cidade luminosa ao fundo. A fúnebre música do Radiohead, Exit Music (for a film), sobe e, gloriosa, abre o filme.
“Acorde do seu sono, as lágrimas secando. Hoje nós escapamos. Respire, continue respirando, não perca sua sanidade”, entoa Thom Yorke em seus vocais tristes. Se Exit Music já é uma música batida no cinema por ser largamente utilizada, aqui ela casa bem com um dos principais temas do filme, o constante estado de fuga de Babenco. O cineasta fala, por vezes, que o fato de ser judeu em sua infância o fazia pensar que não pertencia à lugar algum. Quando escolhe o Brasil como sua morada, por conta dos diversos problemas sociais que o próprio diretor caracteriza como “uma realidade expressiva e caótica”, o realizador não sabe o que de fato é, se um argentino fugido ou um brasileiro forçado. O próprio cinema é um grande refúgio seu, pois ele acaba fugindo de uma realidade tangível para ele próprio recriar, com suas lentes, universos seus, reflexivos.
Em um outro momento do longa, o argentino naturalizado brasileiro fala sobre sua prisão na Espanha, seu constante estado de exílio. Enquanto ele fala sobre essa fuga em uma cena, Bárbara, a viúva do famoso diretor, insere na montagem homens cortando grama, arrancando as raízes do solo, como se fossem eles, os brasileiros que não aceitam Babenco. Dessa forma, a cineasta vai, aos poucos, trazendo os temas caros ao seu ex-marido, enquanto tenta conectá-los à maneira dele de ver o mundo e seus sentimentos por meio da linguagem.
A fotografia em preto e branco tem um papel importante nessa equação. Além de tornar tudo muito mais bucólico, a realizadora declarou em entrevista que essa estética vem justamente da maneira como Babenco enxergava a realidade, em preto e branco. Sua vontade de se aproximar dos sentimentos internos do amado se torna ainda mais clara quando sua câmera vai buscar um primeiro plano fechado no ex-marido e o alterna com cenas de personagens do universo fílmico do diretor argentino, fugindo de possíveis algozes, desesperados. Novamente o tema da fuga sendo abordado, mas agora com Bárbara se adentrando na mente do seu ex-esposo, expondo seu estado de espírito por meio de uma ideia de montagem.
Depois da abertura, o mar toma conta, violento, enquanto a câmera tremula no fundo do oceano. Uma sensação de afogamento surge, sensação essa que a cineasta volta a emular em outros momentos, utilizando áudios do ex-marido falando que está sentindo dor, elencando seus remédios e outras questões relativas à sua doença. Dessa forma, a realizadora introduz o mal que Babenco enfrenta nos seus últimos dias, o início do seu fim, mas guarda o desenvolvimento trágico para o ato final. Afinal, por mais que o documentário seja rodeado o tempo inteiro pela morte, o filme não abre mão de demonstrar o imenso afeto entre os retratados. Um professor, um grande amigo, um amante da arte, um namorado para a vida, Héctor Babenco era tudo isso para Bárbara e sentimos em diversos momentos essa intimidade e esse afeto entre os dois.
A diretora demonstra uma grande vontade de correlacionar os filmes com a vida, com o amor pelo cinema sendo o que mantém todo artista vivo. Novamente, essa era uma ideia de seu marido, perseguida de maneira ansiosa pela diretora de primeira viagem. Em um desses fragmentos fílmicos, ela vai buscar um trecho de um diálogo: “O que é preciso para ser um diretor?”, pergunta um personagem. “Tem que saber contar uma história, e para isso deve-se viver”, responde o outro. Esse é um testamento da própria condição de Bárbara, que sempre se vê como uma aprendiz, algo importante para um documentarista.
Cada passo que você dá em um filme de arquivo é em prol de um caminho narrativo. Você nunca deve permanecer em um caminho óbvio, sempre procurando soluções diferentes de montagem para fazer o seu filme andar, de forma que ele se pontue como uma obra orgânica, que busque na força da imagem o seu grande significado. É muito comum, portanto, que a diretora em seu primeiro trabalho procure o ombro de um diretor experiente como era Héctor Babenco, criando ao redor de sua figura um GPS para achar esses caminhos tão difíceis para um criador.
As cenas de uma Bárbara Paz aprendendo a usar uma câmera enquanto recebe instruções do esposo é uma ilustração bonita disso. Logo depois, em um momento de devaneio, a câmera simplesmente percorre fotos, como se passasse por lembranças de uma vida, em um momento que se torna até engraçado, pois o próprio Babenco dá uma bronca dizendo: “Você não pode passar 5 horas mostrando fotos, senão não vai ser um filme sobre minha morte, vai ser uma série.” Esse momento é complementado por outra passagem, a de várias fotos sendo espalhadas pelo mar. As lembranças ali já estavam sendo testadas pela fugacidade da vida. A doença piorava.
Enquanto o filme vai se destrinchando, ele se permite ser, em seu segundo ato, uma mini biografia de Babenco. Toda a infância é percorrida, a paixão pelo cinema, o envolvimento com a reclusão, as mazelas sociais do país expostas pelas lentes das fotografias de seus filmes. Isso ajuda os espectadores que não conheciam seu trabalho a entender perfeitamente a figura curiosa que era o diretor argentino, um reconhecido ranzinza nos bastidores (inclusive, existe uma cena que comprova sua falta de paciência no set de filmagens), mas um cineasta plenamente consciente das histórias que contava. Além disso, o trabalho das escolhas das cenas das obras do cineasta é, em sua maior parte (calma que ainda tenho considerações sobre isso neste mesmo texto), muito bom, sempre conectando-as aos ideais do realizador. O destaque é, sem a menor dúvida, a cena brilhante em que Marília Pera amamenta Pixote, um retrato claro da busca incessante dos párias da sociedade por amor, que lhes é negado constantemente.
Nem mesmo a aclamação no Oscar por O Beijo da Mulher Aranha ficou de fora. Esse momento específico, porém, nos insere dentro de um outro tema latente na obra. Se os dizeres “Você é um leão” no início do filme já indicavam isso, a sequência em que Babenco depõe sobre a operação de um gânglio que lhe gerou quarenta e poucos pontos, que também foi a origem de um diagnóstico de 4 a 6 meses de vida por seu amigo Dráuzio Varela, mostram a característica lutadora do diretor. Ele não só permaneceu vivo, como terminou a gravação do filme Brincando no Campo do Senhor em pleno período de recuperação. O realizador costumava sempre ignorar a morte, afim de seguir contando suas histórias incríveis para o mundo. Isso não só mostra o quão grande era a sua paixão pela arte, como também é um testamento de sua força impressionante como ser humano.
Depois de explorado tudo isso, o filme vai caminhando para o seu inevitável desfecho. Cenas duras dos últimos dias do cineasta começam a aparecer com mais frequência, mas Bárbara nunca permite que a dor domine a tela por completo. O amor sempre se ergue, maior do que a própria morte, seja em um simples plano dos dois amantes segurando a mão um do outro, seja pelas belas e fugazes últimas imagens de Babenco indo em direção ao mar, em um local que remete diretamente ao seu maior sucesso, O Beijo da Mulher Aranha.
Nesse momento da produção, o fim parece se encaminhar de maneira natural e um último marco, a cena de Bárbara Paz, como atriz, dançando nua em meio a chuva, fecha o ciclo de uma maneira bela. Um último ato artístico e emocional antes da despedida, que ocorre numa transição entre outro fragmento fílmico e a realidade. Bonito, simples e eficiente. Todos os desejos de Babenco imaginando de maneira positiva a sua morte são trazidos pela diretora na conclusão, principalmente o jantar cheio de amigos, que contam com figuras como Fernanda Montenegro e sua filha, Fernanda Torres.
A última cena marca um devaneio do diretor argentino (ele não seria brasileiro a esse ponto?). Ele narra que gostaria de enganar a todos, dizendo que estava morto, mas estando, na verdade, em um quarto com vista para o mar em Hong Kong, casado com a atriz Xu Jinglei. Aqui temos uma rima visual com o início do filme, que fecha o longa como um círculo. Curiosamente, esse final traz à tona certos problemas que o filme possui.
Por mais que seja compreensível, como expresso em certo parágrafo anterior deste texto, o fato de Bárbara Paz se posicionar de maneira devota a figura icônica do marido pode gerar uma cegueira sobre como tornar o seu filme, por vezes, mais impactante. Como assim? As últimas cenas por exemplo, acabam por trazer uma melosidade desnecessária a uma obra que até tenta fugir disso, se mostrando engenhosa com suas ideias. O fato de meramente ilustrar o que Babenco cita, de trazer isso a vida, é algo que não só rompe com a sutileza narrativa, como abre um buraco de obviedade que se deve fugir em documentários de arquivo, principalmente os mais emocionais e experimentais.
Não seria mais forte, por exemplo, terminar somente com a cama branca e vazia, ilustrando a morte? Ou mesmo a imagem de Babenco indo para o mar, conectando com as inúmeras e sufocantes cenas gravadas no fundo do oceano? Talvez o encerramento pudesse ser com uma imagem de afeto entre Bárbara e seu amado, com um momento de congelamento da vida. Essas são apenas algumas de várias opções que poderiam nos deixar pensando na experiência e não apenas tendo uma sensação diluída de respeito extremo.
Dito isso, basta apenas mais dois pontos a se criticar. O primeiro deles é que algumas imagens tentam fazer a ponte entre universo fílmico e realidade, seguindo a lógica estabelecida pela realizadora, mas parecem meramente soltas dentro do documentário, como as cenas de Meryl Streep e Jack Nicholson em Ironweed. Por mais que possam parecer algo conectado à personalidade de seu cineasta, elas parecem simplesmente jogadas sem um contexto muito sofisticado por trás. O segundo ponto diz respeito a falta de habilidade da realizadora e de seu batalhão de montadores em encontrar a consistência perfeita de todas as metáforas e ilustrações utilizadas durante o filme.
Se toda a sequência em que o sonho de Babenco é narrado acaba por ser eficiente por trazer uma atmosfera mórbida de uma casa vazia e escura para o que está sendo contado, é difícil conectar a efetividade de uma imagem como um túnel e sirenes ao fundo com uma narração de uma discussão entre os dois amantes a respeito de uma fala que a diretora parece não gostar e sugere repetidas vezes que Babenco regrave. Como esses dois momentos tão distintos se conectam de forma audiovisual? Me soa pobre, assim como as repetições da diretora mostrando o que se passa por dentro do marido. Se todas as cenas na água funcionam bem, por que explodir um prédio deve ser encarado como um sinônimo de sutileza ao explorar o simbolismo da dor? Parece, novamente, uma obviedade que poderia ter sido evitada.
De qualquer forma, acredito que tudo isso aconteceu pela inexperiência de Bárbara Paz como diretora, algo que somente viver pode consertar em seus próximos projetos. O saldo continua positivo ao fim da experiência, dando uma sensação de que a realizadora conseguiu um feito realmente impressionante, o de refletir sobre a morte e sobre a vida de cada um de nós por meio de uma figura lendária e inestimável da cultura nacional. Além de ter ganhado o prêmio de Melhor Documentário em Veneza, “Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou” está na corrida por indicações aos Oscar de Melhor Filme Internacional e de Melhor Documentário. Estaremos todos na torcida, pois ninguém melhor que Babenco, indicado a Melhor Diretor, para finalmente trazer esse prêmio para casa.
Nota: ★★★✰✰
Ficha Técnica
Nome Original: Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou
Ano: 2019
Direção: Bárbara Paz
Roteiro: Maria Camargo, Bárbara Paz
Elenco: Héctor Babenco, Bárbara Paz, Willem Dafoe, Dráuzio Varella, Fernanda Montenegro
Fotografia: David A. Barkan, André Brandão, Stephan Ciupek, Carolina Costa, Bárbara Paz
Montagem: Bárbara Paz, Cao Guimarães, Felipe Bibian, Juliana Guanais, Eduardo Escorel