Persona | Hannibal Lecter

O que há de tão fascinante no mal? Histórias assustadoras e pessoas de má índole movem a curiosidade humana desde que o mundo é mundo. O seguinte texto busca destrinchar um pouco do fascínio que Hannibal Lecter provoca no público que lê os livros ou assiste os filmes nos quais ele é protagonista. Não há aqui a pretensão de justificar os atos do canibal mais famoso do cinema ou analisar sua psiquê, e sim apenas a vontade de lançar luz sobre características do personagem e seus intérpretes que provocam o espectador, além de entender o porquê dessa figura ter sido tão romantizada da mesma forma que a maioria dos serial killers da vida real são.

 

O medo provoca curiosidade

Na introdução do livro Serial Killers, anatomia do mal escrito por Harold Schechter e lançado pela editora Darkside, o autor faz uma provocação ao argumentar que “Há pessoas que de fato acreditam que serial killers são um fenômeno estritamente contemporâneo, um sintoma de algo terrivelmente fora do lugar no tecido moral da sociedade moderna […]”. Por se tratar de um livro sobre assassinos em série e suas ações ao longo dos séculos, Schechter prova que esses crimes acontecem independentemente da época ou sociedade.

Dessa forma, o que pode ser afirmado é que histórias sobre crimes hediondos são as queridinhas da humanidade desde que eram transmitidas como contos, causos ou canções de bardo, até os canais de TV de hoje com grades especializadas em programas sobre crimes. Como Harold mesmo aponta “[…] Apenas a tecnologia mudou. O apetite do público por histórias verídicas de crimes chocantes continua exatamente o mesmo.”

 

Thomas Harris dá vida ao mal

Thomas Harris, um ex-repórter policial que conviveu em meio ao submundo dos crimes durante os anos em que trabalhou os noticiando, lançou seu primeiro romance em 1975. Intitulado Domingo Negro, a trama envolvia terroristas que planejavam um atentado a bomba. Posteriormente, em 1977, esse livro foi adaptado para o cinema com o mesmo título, sob direção de John Frankenheimer e protagonizado por Bruce Dern e Robert Shaw.

Diante do sucesso, o autor passou os anos seguintes se dedicando à pesquisas sobre assassinatos em série, comportamento e investigações, não apenas para construir sua obra, mas também para torná-la bem embasada. Curiosamente, Harris se graduou no curso de Estudos Ingleses e, na época de universitário, colaborou para revistas literárias com contos macabros.

A partir dessa pesquisa, seus personagens ganham vida e nasce em 1981 seu primeiro livro sobre Hannibal Lecter: Dragão Vermelho. Conta-se que a história do agente responsável pela Unidade de Ciência Comportamental do FBI Jack Crawford foi inspirada em Robert Ressler e John Douglas, dupla conhecida por ter criado o termo serial killer (assistam a série da Netflix Mindhunter). Da mesma forma, Lecter foi inspirado em Alfredo Balli Trevino, um assassino mexicano que Harris entrevistou em 1963. Além disso, o autor se debruçou sobre outros casos de homicídio em série que tornaram possível a produção de uma obra tão rica em provocar desconforto e pavor.

 

A origem de Hannibal Lecter

Hannibal Lecter nasceu em 30 de janeiro de 1938 na Lituânia. Filho de pai conde e de mãe aristocrata italiana, o jovem dividia o amor dos pais apenas com sua irmã mais nova, Mischa Lecter. Logo após o início da Segunda Guerra Mundial, a família Lecter se viu acuada pela invasão nazista, e diante dos ataques apenas os filhos sobreviveram.

Após a morte dos pais, Mischa e seu irmão são sequestrados pelos hiwis, lituanos que ajudavam os invasores alemães que, uma vez instalados na casa de campo dos Lecter, diante da fome em meio a um inverno rigoroso, matam e devoram Mischa. Como resultado, o jovem fica traumatizado e passa a viver em busca de vingança. Findada a guerra, Hannibal passa a residir em um orfanato até ser encontrado por seu tio Robert que o leva à Paris. Após sua morte, Lecter é criado pela viúva e assim inicia seus estudos em Anatomia. Em seguida, comete seus primeiros assassinatos e foge para os Estados Unidos, onde se gradua em Medicina Psiquiátrica.

 

Hannibal e seus intérpretes no cinema
  • Gaspard Ulliel e Brian Cox: o personagem em segundo plano e a justificativa para o mal

A origem de Hannibal foi contada por Thomas Harris no livro Hannibal: a origem do mal lançado em 2006, e que virou filme no ano seguinte com Gaspard Ulliel interpretando o serial killer. Inegavelmente, esse é o texto mais frágil da série de livros/filmes, pois desmistifica a mente maligna de Hannibal Lecter dando a ele uma motivação traumática e vingativa.  Da mesma maneira, o Lecter de Brian Cox é um tanto frustrante para quem se habitou ao clássico O Silêncio dos Inocentes. Em Manhunter – O Caçador de Assassinos, primeira adaptação para os cinemas do livro Dragão Vermelho, o personagem fica relegada ao segundo plano.

No entanto, ainda assim ele não perde sua aura fascinante. Primeiro porque temos em mente toda a sua história posterior repleta de mistérios, e segundo pelo fato do ator que o interpreta conseguir – ainda que diante de um roteiro sofrível – preservar expressões e olhares que mantém certo enigma sobre o que se passa naquela mente.

 

  • Anthony Hopkins: o inesquecível Hannibal Lecter

silence of the lambs

Em oposição a um Hannibal jovem movido pela vingança e posteriormente consumido pelo ódio, Anthony Hopkins nos entregou em suas três aparições como o personagem um homem mais velho tomado pelo desprezo à humanidade e marcado pela sua inteligência e meticulosidade. Quando vemos Dr. Lecter pela primeira vez em O Silêncio dos Inocentes, a sensação que temos é a de que esse encontro irá mudar nossas vidas. E digo “nossas”, no plural, pois tanto a agente Clarice Starling (Jodie Foster) quanto nós, espectadores, somos afetados por aquela presença.

Trajando um macacão azul de presidiário, trancado em uma cela com vidro blindado e destoando completamente do porão em que está encarcerado, o criminoso parece demasiadamente polido. Diferente dos maníacos agitados que berram e pulam em direção às grades enquanto Clarice caminha pelo corredor, o doutor transmite uma tranquilidade incômoda. Seu cabelo impecável, voz polida de timbre moderado e olhos penetrantes desconcertam qualquer um que fixe o olhar naquele rosto.

Esse é o Hannibal Lecter que conhecemos pela primeira vez no clássico vencedor do Oscar de 1991 e revemos nos filmes Hannibal, de 2001, e Dragão Vermelho, de 2002. Um exímio questionador que tira de suas vítimas o foco e planta em suas mentes dúvidas e medos. Um homem elegante, de fino gosto, que consome o melhor da música clássica, além de um artista que domina técnicas de ilustração tanto quanto um bisturi.

 

Reescrevendo e refinando um canibal

Como resultado de toda essa finesse, chegamos ao último intérprete do mais conhecido serial killer do cinema: o dinamarquês  Mads Mikkelsen. Dessa vez em uma série ambientada num período que corresponde aos anos anteriores aos acontecimentos de Dragão Vermelho, Dr. Lecter vive um relacionamento de amizade muito próximo com o agente Will Graham (Hugh Dancy), proximidade essa que se inicia pelo fato de Will estar em busca de ajuda para desvendar mistérios.

O Hannibal Lecter dessa versão não apenas é um excepcional psiquiatra forense e ex-cirurgião, mas também é um mestre da culinária. Existe todo um cuidado na série ao longo de suas três temporadas para que o protagonista seja representado imageticamente como um ícone do primor artístico. Em contraste com o medo e tensão gerados pela interpretação de Anthony Hopkins, aqui ele é um ser que evoca um estranhamento erótico.

A cada ação, Hannibal prepara um prato. Apesar de em alguns momentos sabermos que as carnes postas à mesa são humanas, a graciosidade gestual promovida por enquadramentos dignos de programas do canal de TV Food Network são de dar água na boca. O requinte de sua casa, a delicadeza com a qual ele cuida daquele abate e a trilha sonora instrumental auxiliam na composição. O Lecter de Mikkelsen é uma esfinge que declara “decifra-me ou te devoro” a qual você responde com um sim. Ao fim, aqueles que se entregam ao charme enigmático do doutor se tornam sua Bedelia.

 

A soma das características intensificam o carisma da má índole

Após todos esses apontamentos, ainda assim não é possível termos afirmações do ponto de partida para Hannibal Lecter ser tão fascinante. Podemos supor, no entanto, que talvez seja a presença desse desejo coletivo de se aproximar do que nos dá medo ou o leve despertar, diante de uma situação de crime, do Mr. Hyde que há em cada um de nós.

Em suma, temos a certeza de que ver e ler sobre um pária que gosta de exibir seus feitos sacia nosso desejo por desvendar, mesmo que superficialmente, os mistérios da vida e da morte. A relação de Hannibal com a psicologia e a psicanálise são sem dúvidas outro fator instigante. Alguém que conhece e pode dominar a mente humana só pode ser um gênio, mesmo que do mal.

Seja por sua sede de vingança, por sua nobreza e elegância ou por seus dotes culinários questionáveis, Hannibal Lecter será sempre uma das terríveis paixões daqueles que consomem filmes e livros de gênero.

 

Fontes
  • Para saber mais sobre a história macabra de Issei Sagawa, clique aqui.
  • Para conhecer mais sobre o assassino mexicano que inspirou o personagem Hannibal Lecter, clique aqui.
  • O Silêncio dos Inocentes, de Thomas Harris. 12ª edição, Rio de Janeiro, Record, 2007.
  • Serial Killers, anatomia do mal, de Richard Schechter. Rio de Janeiro, Darkside, 2013.

 

Leia também o nosso Listão do Clube cobre a presença de Hannibal Lecter na cultura pop, basta clicar aqui.

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Yasmine Evaristo

Artista visual, desenhista, eterna estudante. Feita de mau humor, memes e pelos de gatos, ama zumbis, filmes do Tarantino e bacon. Devota da santíssima Trindade Tarkovski-Kubrick-Lynch, sempre é corrompida por qualquer filme trash ou do Nicolas Cage.

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