Na Netflix | Malcolm & Marie

Contém spoilers. Continue por sua própria conta e risco!

 

Malcolm & Marie estreou na Netflix sem muito alarde, na reta final da temporada de premiações e sem muito foco da plataforma de streaming. Dias antes da estreia, a obra recebeu críticas mistas e muito se especulava que o principal motivo disso era um backlash gerado pelos jornalistas de Los Angeles por conta das polêmicas críticas que o diretor Sam Levinson brada abertamente em seu projeto contra eles. Afinal, a produção realmente merece ser tão criticada ou seria só um hatezinho gratuito? (recomendo que leiam a crítica, especificamente, do LA Times). 

A obra se inicia com o cineasta Malcolm chegando em sua casa junto de sua namorada, Marie. Logo de cara, é possível observar que a personagem de Zendaya chega chateada com alguma coisa, enquanto o personagem de John David Washington liga o som e começa a se gabar pela estreia de seu filme, elogiado por todos presentes. O trabalho de câmera do realizador Sam Levinson com seu diretor de fotografia Marcell Rév é muito sentido logo de cara. Enquanto Malcolm dança sozinho curtindo sua noite e Marie prepara um não tão delicioso macarrão com queijo, a câmera, do lado de fora da casa, passeia por toda a extensão do imóvel, cheio de divisórias e barras em suas janelas que mais lembram uma prisão.  

Isso serve, como linguagem, para tornar a figura dos dois diminutas em cena, recortadas, o que dá uma maior sensação de aprisionamento, de que a casa é, metaforicamente, uma grande prisão. O primeiro ato vai se desenrolando, enquanto uma conversa vai gradativamente evoluindo para um conflito. Marie termina de preparar seu macarrão com queijo feito para Malcolm e o coloca bruscamente na mesa. Nesse momento, o título do filme aparece na tela em letras garrafais. Parece um momento estranho para colocar o título de um filme certo? Por que Sam Levinson fez essa escolha?  

Mais tarde, Marie abre o jogo. Ela, na verdade, está com raiva de Malcolm por ele não ter a agradecido no tradicional discurso após a sessão de seu filme. Rapidamente, o jogo de linguagem do diretor é estabelecido e perdura durante o restante da obra, com câmeras em traveling constante, sempre captando os dois protagonistas à distância, com o foco mudando entre eles (a distância física entre duas pessoas no quadro quase sempre indica uma distância emocional entre elas). Um personagem dá o seu ponto de vista, a câmera permanece em sua figura distante. Logo após, a réplica de outro personagem expondo o que acha da situação, um contra plano dele ao longe. De repente, uma informação importante aparece no diálogo e o diretor aproxima a câmera em um primeiro plano fechado no rosto de quem está falando, às vezes inclinado de baixo para cima quando um personagem tem mais razão que o outro.

  

Retomo aqui o meu questionamento anterior: por que Sam Levinson fez a escolha de mostrar o título no momento do macarrão com queijo? Porque Marie não sente que Malcolm a valoriza, nem mesmo o fato de ela ter feito uma comida para ele totalmente transtornada. Isso, claro, vai além de um mero agradecimento. Ele não valoriza a presença dela, as pequenas ações que faz no dia-a-dia, sua autenticidade e diversas outras coisas. A própria Marie revela isso no clímax, mas o diretor/roteirista antecipa esse elemento aqui, transformando o macarrão com queijo em uma metáfora visual criativa da principal problemática do filme.  

Quando aquela discussão se esgota, o eixo de câmera muda assim como a situação. Levinson passa a mostrar cenas intimistas com Malcolm e Marie próximos, dando e recebendo carícias. Uma situação passageira, pois mais dores vem à tona e a briga retorna. A constante tentativa de fugir do conflito sem qualquer um dos dois tentar entender de fato o outro e resolver o que existe de mágoa, sempre fazem os personagens saírem da prisão metafórica – a casa – e irem fumar, tomar um ar ou qualquer outra coisa que o roteiro invente. Esse elemento é constantemente utilizado como artifício pobre do texto, com o objetivo de afastar as carícias e dar espaço novamente aos problemas que cada um tem um com o outro.  

Em um dos momentos mais fortes do filme, Malcolm fala de maneira bem ríspida com Marie no banheiro, com ela imersa na água da banheira e ele próximo. Enquanto o personagem vai falando sobre como seu filme foi construído pensando em suas ex-namoradas, Marie começa a se sentir cada vez mais triste. Ao fim do diálogo, ela submerge totalmente na água, sinal de que suas tendências autodestrutivas e sua falta de compreensão que Malcolm pode sim ter tido outras experiências não ligadas a ela, que seu namorado não necessariamente precisa dela, mas a ama, a fazem se encolher dentro de si própria, querer novamente fugir daquilo. Nesse momento, a estética em preto e branco da fotografia revela um sentido além do óbvio.  

A água da banheira de Marie tem um tom cinzento, que separa seu corpo imerso na água de sua cabeça. Se pensarmos que uma fotografia em preto e branco sempre é também pensada pelo trabalho em escalas de cinzas, é possível fazer uma conexão metafórica. Sam Levinson aqui nos diz que Marie não é uma personagem unidimensional, não apenas tem um lado bom e um lado ruim, o simples preto e branco, mas uma gama muito complexa de sentimentos e emoções, os famosos tons de cinza de alguém, que vão além da maneira básica e óbvia com que Malcolm a enxerga (um aceno do roteiro ao fato da personagem estar certa desde o princípio, o que é confirmado ao fim). A figura da personagem está, portanto, submersa em seus próprios problemas e ao fim da cena ela afunda totalmente neles, mais uma alegoria realizada pelo diretor/roteirista.

 

O segundo ato, assim, vai trazendo novos conflitos que vão gerando uma animosidade entre os personagens até o momento em que se chega no último e derradeiro monólogo: o de Marie expondo uma verdade arrebatadora. Aqui é onde Zendaya brilha mais, dando uma força extraordinária a sua personagem. As cenas a seguir parecem mais óbvias que as metáforas anteriores, mostrando o resultado da “batalha” entre os namorados. Espelho, divisórias, tudo divide os personagens em várias partes e os separam, o que parece mostrar que nada vai acabar bem para eles. A última cena, porém, é mais esperançosa, revelando os dois olhando para um céu branco, enquadrados da janela do quarto. Isso nos diz que, por mais que eles se sintam sufocados juntos, a esperança do amor falar mais alto é maior do que tudo.  

Apesar de reconhecer nos parágrafos anteriores que o filme tem vários elementos competentes de linguagem, não dá para dizer que é tudo lindo e maravilhoso. A maneira formulaica como a obra progride torna o ritmo muito dilatado, com muitas repetições de brigas que parecem, do ponto de vista formal, iguais, o que causa um forte sentimento de que tudo aquilo é redundante e poderia ser resolvido logo na primeira briga. As pausas já mencionadas entre um conflito e outro são muito forçadas pelo roteiro, sem qualquer naturalidade ou mesmo algo orgânico que faça a produção transitar entre as discussões.   

O filme também se mostra muito verborrágico, sem ações concretas que nos façam encarar o sentimento entre os dois personagens retratados como amor. Afinal, uns beijinhos filmados em primeiro plano não categorizam por a mais b que duas pessoas se amam. É também criticável a maneira como o casal é escrito, no caso, duas pessoas histéricas que precisam gritar o tempo todo e ser infantis em praticamente todas as discussões do filme. Para que o público conheça melhor Malcolm e Marie, seria necessário entender de forma mais bem sucedida essa relação, assim como quem é esse homem e quem é essa mulher, não somente mostra-los sendo altamente agressivos e arrependidos.   

Sam Levinson até tenta mostrar o quanto Malcolm é egocêntrico ao levantar uma discussão sobre como os críticos falam burrices, não entendem os artistas, não conhecem sobre identidade, escrevem falas racistas o tempo inteiro ou mesmo não conseguem preservar “o grande segredo do cinema” que é a intenção do autor. Tudo isso é uma grande bobagem, pois todos podem expor livremente suas opiniões da forma que quiserem, ainda mais considerando que todo filme, depois que sai da mão de seu criador, pertence ao público para refletir suas ideias.

   

Eu até sinto que existe algo pessoal entre Levinson e alguém do LA Times, pois nada justifica você inserir um seguimento tão grande e tão diluído do tema principal do filme, nem que seja algo relacionado ao desenvolvimento de personagem. Vale também a menção ao quão péssimo ficou John David Washington nesses momentos, gritando de forma insuportável. Uma pena essa mancha em sua atuação, pois o ator entrega muita intensidade e competência em outras cenas onde é exigido. Zendaya escapa incólume dessa vergonha.  

Malcolm & Marie é um filme com bons elementos técnicos e temáticos, mas sucumbe aos impulsos megalomaníacos de seu diretor e à sua falta de sutileza em vários elementos da construção da sua narrativa. Quem sabe por um milagre, Zendaya repita sua indicação ao Critics Choice Awards como Melhor Atriz no Oscar, mas, por melhor e mais esforçada que ela esteja no papel, é muito difícil crer que isso vá acontecer agora, ainda mais depois da polêmica envolvendo Sam Levinson e os jornalistas de Los Angeles. Respondendo diretamente à pergunta deixada no primeiro parágrafo desse texto, a obra merece sim as críticas mistas que recebeu, pois ainda está muito distante dos melhores exemplares de romances sobre crises no relacionamento. 

Nota: ★★✰✰✰

 

Ficha Técnica

Título Original: Malcolm & Marie

Ano: 2021

Direção: Sam Levinson

Roteiro: Sam Levinson

Elenco: Zendaya, John David Washington

Fotografia: Marcell Rév

Montagem: Julio Perez IV

Figurino: Samantha McMillen, Law Roach

Trilha Sonora: Labrinth

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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