Satine, a estrela do Moulin Rouge
Em meio a tantos estímulos em tela quando vemos Moulin Rouge: Amor em Vermelho, é impossível tirar os olhos de Satine. A cortesã, estrela maior do local, é a menina dos olhos do patrão Harold Zidler e de toda a macharada da sociedade parisiense que busca noites regadas a um pouco de boemia. Nicole Kidman doa seu magnetismo para compor uma das personagens mais marcantes de sua carreira – e não à toa, sua primeira indicação ao Oscar. Um farol de complexidade entre tantas personas unidimensionais desta obra de Baz Luhrmann.
O filme é tão frenético em todos os sentidos que consegue tranquilamente bancar a falta de profundidade na maioria de seus personagens, incluindo o vilão (e você pode ler mais sobre isso aqui, na nossa review sobre o filme). Porém, quando se trata de seus protagonistas, e mais especificamente de Satine, a história é outra. Inspirada em Marguerite Gautier, a personagem principal do romance A Dama das Camélias de Alexandre Dumas (filho), Satine carrega sensualidade, romantismo, comédia e tragédia em um combo perfeito.
Femme fatale ou passarinho na gaiola?
Satine é um mulherão sensual enquanto ocupa o centro das atenções no Moulin Rouge. Mas, longe das vistas do público, tem o lado de uma moça sonhadora que se sente presa como um pássaro em uma gaiola (e Baz Luhrmann não poderia ser mais claro ao colocar um passarinho engaiolado nos aposentados de Satine e escolher “One Day I’ll Fly Away” como um verdadeiro hino para a personagem). É como se ela estivesse acorrentada à sua vida de cortesã servindo aos desejos dos figurões de Paris. Mas e os seus próprios desejos?
Tendo a icônica atriz parisiense Sarah Bernhardt que, assim como Toulouse-Lautrec, é uma figura do mundo real emprestada ao universo do filme (embora ela seja apenas citada) como sua ídolo, o maior sonho de Satine é se tornar uma atriz de verdade. O “de verdade” é porque, de certa forma, ela encara o seu dia-a-dia no Moulin Rouge como uma performance, uma personagem, um papel que precisa desempenhar. Afinal, ela está disposta a tudo pelo seu sonho.
“Sou uma cortesã. Sou paga para fazer os homens se iludirem.”
Essa frase pode parecer uma mera demonstração de que Satine sabe exatamente qual o seu trabalho, mas também esconde a forma como ela própria suprime todo o seu romantismo para ser racional e prática.
Imagine: você é uma mulher sozinha, sem família, tendo que se sustentar e buscar sua autorrealização na Paris do final dos anos 1890. Nesses tempos da virada do século XIX para o XX, um bom casamento seria uma forma de sair daquela vida e uma das únicas garantias de um futuro tranquilo para uma mulher. Então, não é de se espantar que, como toda garota de sua época, Satine tenha medo de se apaixonar por um pé-rapado que não tem onde cair morto.
Como toda mulher, ela também carrega nos ombros os pesos da culpa e da responsabilidade – e essa é uma característica que parece se repetir em qualquer ponto da história mundial – por coisas que talvez nem fossem da sua alçada de fato, pelo menos não totalmente. Um exemplo disso é a forma como ela se sente responsável pelo futuro do Moulin Rouge, como se o cabaré fosse um peso que ela precisa levantar sozinha, ainda que seja uma mera funcionária do local. Aquela é a casa dela há sabe-se lá quanto tempo e há um certo instinto de proteção a essa sua “zona de conforto” (que está longe de ser realmente confortável, já que ela precisa vender o próprio corpo, mas é a realidade que ela conhece).
E mal sabe ela que, em seu trabalho de iludir os homens, ela mesma está sendo constantemente iludida.
Satine e os homens
O primeiro homem na vida de Satine cuja relação com a moça é importante analisar é seu patrão Harold Zidler (Jim Broadbent). Costumo dizer que na verdade ele é um “pai-trão”, já que, além de ser o empregador da cortesã, ele também funciona como uma figura paterna em certos momentos. A relação dos dois é de certa cumplicidade, mas Satine também aceita suas ordens e conselhos, e o respeita com certa reverência.
Por outro lado, Zidler também é manipulativo em alguns momentos em prol do seu estabelecimento. Ele chega a usar a doença de Satine para tirar o chão de sua pupila mais querida e obrigá-la a colocar o futuro do Moulin Rouge em primeiro lugar. Não deixa de ser uma punição.
Já O Duque (Richard Roxburgh) a vê totalmente como um objeto, um troféu. E pior: um troféu o qual ele tem direito de chamar de seu. A forma como ele se refere à cortesã, sobretudo em seus papos a sós com Zidler em que eles acertam a “transação”, é sempre cheia de pronomes possessivos e expressões de gosto duvidoso. O Duque seria o “macho escroto com carteirinha de Chernobyl” em 2021. Não é à toa que Satine aparece de preto em seu jantar com ele, assim como em todas as cenas em que deve se encontrar a sós com aquela criatura.
E então temos Christian (Ewan McGregor). Lembra que eu falei sobre os protagonistas do filme serem mais complexos? A complexidade de Christian mora principalmente na relação dele com seu grande amor. Por um lado, ele parece um homem dos sonhos: lindo, romântico, criativo, bem-humorado, carinhoso. É o amor do novo boêmio que começa a transformar a percepção de Satine sobre seu autovalor. Se antes ela acreditava que valia o que pagavam por ela, agora a personagem encontra uma autoestima que é abastecida pela paixão de Christian e pelo sentimento que brota dela mesma. Ela não quer ser mais uma propriedade nem de Zidler, nem d’O Duque, nem do Moulin Rouge.
Porém, o poeta também tem seus altos e baixos. De certa forma, o que Christian chega a propor à sua amada é que ela abra mão do sonho dela em nome da paixão dos dois. Claro que na equação também havia a submissão dela ao Duque, mas em algum momento eles pararam para pensar em outra forma de tirar o ricaço da jogada sem que Satine tivesse que abandonar o palco? Nessa cena da proposta de fuga, Nicole Kidman é tão incrível que consegue demonstrar um certo titubeio de Satine antes de aceitar, ao se dar conta de que vai ter que deixar seu sonho pra trás, como se ela tivesse um momento de análise do que pesaria mais, isto é, viver sem Christian ou sem a chance de ser uma atriz.
Ok, a gente entende que o lema da boemia coloca o amor acima de tudo. Sendo assim, podemos até compreender a proposta de Christian e a enxergá-la com bons olhos. Mas, o que não dá pra passar pano realmente é o momento “orgulho ferido” protagonizado por ele, que se sente no direito de humilhar Satine publicamente depois de levar um pé na bunda – o qual ele sequer conhece o verdadeiro contexto.
É nesse momento que vemos uma Satine mais vulnerável e destruída do que nunca. Não só ela acabou de saber que está à beira da morte, como pesam a ela o futuro do Moulin Rouge, uma carreira nos palcos que ela nem sabe se vai poder desfrutar e a vida do seu verdadeiro amor ameaçada pelo Duque. Ela ainda tem que passar por aquela cena deplorável de Christian jogando dinheiro nela como pagamento “pelos serviços prestados” e ouvir palavras tão cortantes. De algum lugar ela tira energia para acabar com a farsa e se declarar ao poeta em uma das cenas mais marcantes do filme, onde a personagem mostra sua fragilidade, em especial de saúde, e também sua força catalisada por seus dois grandes amores: o palco e, principalmente, Christian.
Essa é Satine…
Intensa, espontânea, sonhadora, solitária, ambiciosa, apaixonada. Existem muitos adjetivos capazes de descrever pequenos pedaços dessa personagem marcante. Nenhum deles é suficiente sozinho, no entanto. Mas talvez um descreva bem o sentimento que nós, espectadores dessa explosão de cores e amor que é o filme de Baz Luhrmann, temos desde que Nicole Kidman entoa as primeiras palavras de “Sparkling Diamonds”: Satine é apaixonante.