Cinzas no Paraíso (1978) | Descubra um Clássico

 

São poucos os diretores que possuem seu sobrenome como forma de definir um estilo narrativo. E Terrence Malick, ainda que idolatrado e menosprezado na mesma proporção pelo público, é um desses artistas que basta poucos segundos de projeção para sabermos que ele é o responsável pelo filme.

Ainda que tenha ficado 20 anos sem lançar uma obra e consolidado sua autoral linguagem visual com Além da Linha Vermelha, é com Cinzas no Paraíso que demonstra seu potencial como cineasta (chegando a vencer o prêmio de melhor diretor no festival de Cannes) ao não abusar de diálogos, colocar a natureza não como um mero cenário e fazer com que a interação dos personagens nas esplêndidas ambientações tenha um propósito.

No filme de 1978 protagonizado Richard Gere, Brooke Adams e Sam Shepard presenciamos meninas brincando nos campos de trigo, homens se divertindo no lago, orações sendo realizadas no vasto prado, o casal bebendo vinho à luz do luar e por aí vai. Praticamente não há acontecimento sem a onipresença majestosa da natureza, logo, o naturalismo de Malick toma controle de absolutamente todos os frames da película.

Não é à toa que a fotografia (vencedora do Oscar) deslumbrante do espanhol Néstor Almendros, muitas das vezes, registra (através das câmeras de 70mm) paisagens ou animais de modo isolado antes que qualquer segmento dramático prossiga. Eis a meticulosa composição imagética aliada a uma dramaticidade orgânica e sensível para concretizar o paralelo desses dois mundos interlaçados.

A história contada no início do século XX (que, em certos aspectos, lembra muito O Pão Nosso de Cada Dia do gênio F.W. Murnau) possui uma sutil crítica aos Estados Unidos por este ser supostamente a terra das oportunidades, mas o que ocorre são imigrantes em condições precárias de trabalho para gerar um lucro gigantesco para fábricas, empresas e corporações — dois anos depois, o épico Portal do Paraíso viria a abordar essas mesmas questões com mais fervor.

A dicotomia fica bem estabelecida entre cidade e campo já no início quando o casal sai de Chicago para esse local bucólico no Texas.

Existe uma certa subversão do romantismo dentro da narrativa de Cinzas no Paraíso (influência direta do movimento da Nova Hollywood) por haver esse plano do “golpe do baú”, onde a desesperança financeira é algo mais que palpável. Os princípios da moralidade/ética vão de encontro com a noção do instinto de sobrevivência no universo selvagem do capitalismo.

Tudo isso é belamente exposto através do olhar deslumbrado do personagem vivido por Gere ao ver a imensa e luxuosa casa no meio daquele lugar; é a representação definitiva do que ele almeja: uma vida confortável, tranquila e segura.

Contudo, Malick está mais interessado nessas relações interpessoais que qualquer outra coisa. Por isso, já no terço final, tomamos conhecimento de que a personagem principal também se apaixona pelo fazendeiro que não falece devido ao seu preocupante estado de saúde, construindo um triângulo amoroso que apenas pode gerar resultados devastadores.

Como é já de se esperar do diretor-roteirista, existe todo um contexto religioso, ainda que sutil, por trás dos eventos. O melhor exemplo é o enxame de gafanhotos (e aqui a referência com o texto bíblico serve para revelar tal acontecimento como uma praga) que vem como prenúncio da inevitável tragédia.

É a maneira poética que Malick escolhe para punir seus personagens, seja aquele que tem a ideia de se enriquecer desonestamente, como também aquele que “suga” o árduo trabalho dos pobres para se tornar cada vez mais rico.

Não há um juízo de valor propriamente dito. Todos têm sua parcela de felicidade e todos são afetados pelas consequências de seus atos. Como é possível ter um final feliz com tanta mentira e violência? Portanto, o título original Days of Heaven (tradução: Dias de Paraíso) adquire um tom cínico e irônico por si só.

A narração em off tem como “locutora oficial” a irmã do protagonista. Como todos os filmes do artista, os textos não possuem uma intenção óbvia para descrever os acontecimentos; pelo contrário, há um iminente senso filosófico que gera mais indagações que respostas.

A jovem garota, logo no início, fala de um mundo em chamas para condenar as pessoas más e gerar a redenção aos benfeitores, porém, no fim, afirma que ninguém é perfeito e que nunca existirá uma pessoa perfeita, já que cada indivíduo é meio demônio e meio anjo.

O abismo ideológico se dá por conta do aprendizado. Em Cinzas no Paraíso, as coisas são bem mais complexas que rótulos porque é justamente essa zona cinzenta que tornam os seres humanos tão interessantes.

Nota: ★★★★★

 

 

Ficha Técnica

Nome Original: Days of Heaven

Ano: 1978

Direção: Terrence Malick

Roteiro: Terrence Malick

Elenco: Richard Gere, Brooke Adams, Sam Shepard, Linda Manz, Robert J. Wilke, Stuart Margolin, Doug Kershaw

Montagem: Billy Weber

Trilha Sonora: Ennio Morricone

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Jonatas Rueda

Capixaba, formado em Direito e cinéfilo desde pequeno. Ama literatura e apenas vê séries quando acha que vale muito a pena. Além do cinema, também é movido à música, sendo que em suas playlists nunca podem faltar The Beatles, Bob Dylan, Eric Clapton e Led Zeppelin.

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