Identidade | Na Netflix

 

Atenção, esse texto pode conter spoilers. Leia por sua conta e risco!

 

Em certa altura de Identidade, a personagem de Tessa Thompson conversa com um homem que afirma crer que ela conseguiria se passar por uma mulher branca. Ela concorda, e ele a questiona do porquê não fazer isso. A princípio, ela fica em silêncio, ele insiste e Thompson o responde com uma pergunta “Quem disse que não faço?” e completa dizendo que todo mundo se passa por alguma coisa. É justamente sobre aparências e percepções que o filme de estreia da atriz Rebecca Hall procura falar, debatendo temas como relações raciais, colorismo¹, sexualidade e classe.

Identidade

Situado em Nova York nos anos 1920, o longa acompanha Irene (Thompson), uma afro-americana, que, em um dia de muita calor na cidade, reencontra a amiga de infância Clare (Ruth Negga), que está casada com um rico homem branco racista e se passando por um mulher branca. A partir desse momento, ela verá seu mundo virar de cabeça para baixo e sua vida se confundir com a de sua amiga.

O título original em inglês de Identidade, “Passing”, faz referência ao conceito de uma pessoa “se passar” como parte de um grupo racial diferente do seu. No caso do filme, faz alusão ao ato de uma pessoa negra, com o objetivo de escapar das convenções sociais e legais da segregação racial e da discriminação, conseguir ser aceita ou vista como branca.

Identidade

Identidade se inicia com Irene a procura de um livro infantil para seu filho que faz aniversário no dia seguinte. Isso a leva a uma loja de brinquedos frequentada por brancos. No local, ela consegue “se passar” por uma mulher branca, mas sempre escondendo parcialmente o seu rosto com o chapéu e também tendo uma postura discreta e voz baixa, tentando não ser notada. Saindo da loja, a personagem sente o forte calor do dia e prontamente chama um táxi. Tendo conseguido “se passar” na loja, ela aceita a sugestão do motorista de um hotel para ela poder se refrescar com um chá gelado.

Chegando lá, antes de entrar, percebendo que o local é frequentado por brancos, ela para na frente do prédio e resiste, como se achasse que ali ela não conseguiria “se passar” como na loja e seria exposta. No entanto, ainda assim, ela entra e se senta em uma das mesas. Enquanto aguarda o garçom, a personagem fica observando as pessoas a sua volta e também o que falam, demonstrando a constante tensão e insegurança de Irene. Em seguida, um casal chega, conversa e o homem sai, restando apenas a mulher, Clare.

Identidade

A diretora Rebecca Hall as coloca em mesas opostas, somente se observando e sem falar uma palavra. A personagem de Negga encara a de Thompson, que tenta resistir ao máximo devolver o olhar, mas não consegue. Desesperada por achar que foi descoberta por uma mulher branca, Irene se levanta para ir embora, mas Clare logo se aproxima e afirma que a reconhece. Por mais que a outra fale que é engano, a personagem de Negga insiste e diz “Você não mudou nada”. Pronto, a partir desse momento a vida de ambas vai se entrelaçar.

Inicialmente, Clare afirma que, independente do risco, vale o preço “se passar”, já Irene, diz ter tudo que sempre quis. Porém, com o passar do filme, percebemos que a primeira se sente sufocada por ter que ser alguém que não é, suportando o racismo do marido que não sabe que ela não é branca, e ter de se afastar de sua comunidade, gerando um sentimento de solidão e isolamento na personagem, já a segunda, na verdade, quer viver em uma realidade em que a preocupação com o racismo não fure a sua bolha de vida perfeita e controlada, moldada à luz, inclusive, das relações de classe entre patrão e empregado.

Além disso, Clare sente inveja do senso de ética e dever, e da segurança de Irene, ao mesmo tempo em que a própria Irene quer a personalidade viva e o espírito livre de Clare. Há também espaço para uma certa tensão sexual velada entre as duas, que nunca de fato é explicitada, mas fica subentendida em trocas de olhares e também toques entre ambas as mulheres. Para Clare, Irene é seu bote salva-vidas da infelicidade e solidão, e para Irene, Clare reflete uma vida longe da dura realidade racial que ela não quer por perto, contudo, não consegue admitir para si mesma esse desejo. Esses sentimentos vão mover Identidade.

Identidade

Utilizando-se da fotografia em P&B e suas nuances, do espanhol Eduard Grau, a diretora busca mostrar a área cinzenta que existe por trás das percepções e da aparência que suas protagonistas insistem em manter para os outros e si mesmas. Para isso, são utilizados muitos espelhos e também um trabalho excepcional da realizadora em conjunto com as atrizes com os olhares, que conseguem expressar o que a alma das personagens está sentindo.

Em uma cena fantástica de Identidade, que já está entre as melhores do ano, vemos Irene descendo a escada em um plano detalhe que só mostra sua mão passando pelo corrimão. Em seguida, a câmera toma sua perspectiva e a filma olhando o espelho que reflete seu marido e Clare conversando muito próximos um do outro. Quando ela chega até eles, vemos que ambos estão, na realidade, significativamente distantes. No entanto, a partir desse momento, a ideia de uma traição de seu marido com Clare vai assombrar a mente de Irene, mas será que essa insegurança é por perder o marido ou pela amiga?

Identidade

Identidade é um filme desafiador, que não te dá respostas fáceis ao abordar temas tão complexos e espinhosos. Mas as fantásticas atuações de Tessa Thompson e Ruth Negga, além da estreia na direção de alto nível da atriz Rebecca Hall, tornam a experiência recompensadora.

Para assistir o filme na Netflix, clique aqui.

Nota: ★★★★✰

 

¹ Segundo o Portal Geledés, em artigo escrito por Aline Djokic publicado originalmente no site Blogueiras Negras, “o colorismo ou a pigmentocracia é a discriminação pela cor da pele e é muito comum em países que sofreram a colonização europeia e em países pós-escravocratas. De uma maneira simplificada, o termo quer dizer que, quanto mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa pessoa irá sofrer.”

 

Ficha Técnica

Título Original: Passing

Ano: 2021

Direção: Rebecca Hall

Roteiro: Rebecca Hall

Elenco: Tessa Thompson, Ruth Negga, André Holland, Bill Camp, Gbenga Akinnagbe, Antoinette Crowe-Legacy, Alexander Skarsgård

Fotografia: Eduard Grau

Montagem: Sabine Hoffman

Trilha Sonora: Devonté Hynes

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Vinicius Dias

Carioca graduado em Relações Internacionais, não sabe muito bem quando começou a sua paixão pela Sétima Arte, mas lembra de ter visto Tarzan (1999) no cinema três vezes e de ter sua fita dupla de Titanic (1997) confiscada pela sua mãe por assistir ao filme mais vezes do que deveria. Não gosta de chocolate, café e Coca-Cola, mas é apaixonado por Madonna, Kylie Minogue e Stanley Kubrick.

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