Harry Potter e a Pedra Filosofal | Especial
Atenção, o texto contém spoilers… DA SAGA TODA!
Lumus! Eu juro solenemente não fazer nada de bom!
Harry Potter e a Pedra Filosofal foi o primeiro filme que eu vi no cinema, tinha somente 4 anos de idade. Quando eu falo isso, as pessoas se espantam. Geralmente isso acontece por me acharem novo demais, afinal, o filme é de 2001, que foi um dia desses… Calma lá, já faz 20 anos? É, finalmente estou ficando velho.
É lógico que não me lembro com todos os detalhes de como me senti naquele momento, mas o fato é que me apaixonei nos anos seguintes tanto pelo cinema, quanto pela franquia do menino bruxo. Cresci junto de Harry, Rony, Hermione, Neville e todos os alunos da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. A cada ano, uma nova ansiedade surgia para ver um de meus personagens favoritos enfrentando um desafio diferente, assim como eu enfrentava os meus próprios.
As lembranças são muitas, desde eu perguntando para a minha mãe, logo depois da cena do espelho de Ojesed, se o filme estava perto de acabar (crianças são impacientes, pessoal), até o fatídico dia que me mandaram calar a boca na sala de cinema porque eu repetia todas as falas do trailer de Prisioneiro de Azkaban. Eu normalmente entro mudo e saio calado do cinema, mas em Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2 lágrimas escorreram pelos meus olhos ao ouvir Hedwig’s Theme, a tão famosa música tema da franquia, nas notas originais de John Williams e junto da cena em que o filho de Harry Potter e Gina Weasley, Alvo Potter, pega o Expresso de Hogwarts para a escola de magia. Fui transportado as inúmeras vezes que assisti para a cena do “menino que sobreviveu” passando pela plataforma 9 3/4 e vendo aquele glorioso trem pela primeira vez.
Sou muito suspeito para falar de Harry Potter e a Pedra Filosofal. Esse, provavelmente, é o filme que eu mais vi nos meus 24 anos de existência. Graças a uma fita VHS (uma espécie de retângulo mágico que rodava filmes, para você que é jovem demais), eu assistia o primeiro capítulo da saga praticamente todo dia e sei muitas falas decoradas, os acordes de John Williams que tocam em cada cena, maneirismos dos atores… Chega a ser ridículo (ou fofinho, você que escolhe) o tanto que eu conheço esse filme.
Naturalmente, rever a obra me relembrou muitos momentos felizes. É gratificante observar que 20 anos depois da estreia, Harry Potter e a Pedra Filosofal segue mágico da mesma forma, talvez com um ou outro efeito datado. Se eu nunca soube explicar minha fascinação pelo filme anteriormente, hoje que estudo cinema diariamente consigo entender como Chris Columbus trouxe a magia das páginas do livro para o mundo real. Posso dizer com certa propriedade que não foi tarefa das mais fáceis.
Tudo nesse filme tem ares de espetáculo, numa vibe bem “spielberguiana”. Columbus desde a primeira cena cria uma sensação de mistério aos bruxos e ao mundo da magia, mostrando Alvo Dumbledore, Minerva McGonagall e Rúbeo Hagrid em torno de sombras fortes, em uma rua escura, deixando um bebê com uma cicatriz na porta da casa dos Dursley, na rua dos Alfeneiros n.º 4. O espectador já cria um engajamento instantâneo e o diretor apenas constrói em cima de expectativas criadas e traz excelentes recompensas.
Para ver isso ainda mais a fundo, basta analisar as sequências iniciais. Harry vive miseravelmente com os tios, até que descobre seu dom mágico falando com uma cobra em um zoológico. Logo após, eles fazem de tudo para reprimir o garoto, mas ele recebe cartas e mais cartas o convidando a ser o mais novo aluno da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.
A cena em que Harry recebe milhares de cartas em um domingo é especialmente apoteótica, com Columbus mostrando o lado de fora da casa rapidamente se enchendo de corujas, ao passo em que treme a sua câmera emulando um terremoto. Assim ele demarca a chegada de várias cartas, que quando acontecem, mostram o nosso protagonista muito feliz, em um ângulo de cima para baixo. Normalmente, isso serve para mostrar um personagem diminuído, impotente na situação, mas aqui Harry vem de encontro à câmera, ficando maior que todos os demais personagens, o que causa uma relação de superioridade do personagem. Aqui ele venceu a barreira dos tios e finalmente pegou uma carta, indo de encontro ao seu destino.
O encontro de Hagrid e Harry na casa no meio do nada também possui ares de suspense, como Spielberg normalmente fazia em Jurassic Park. Se você quer demarcar um sentimento maior de tensão e surpresa, esconda o ser assustador o máximo possível, pois o medo real vem do desconhecido. Hagrid, aqui, serve quase que como uma espécie de “monstro”, pois ele é o mal da bruxaria que vem assolar os tios do protagonista, especialmente a Tia Petúnia, irmã da mãe de Harry, esta que era “uma bruxa estranha” como ela a define. Tematicamente, temos a primeira ligação da franquia com a temática do preconceito, pois sempre quem é preconceituoso nega o diferente de sua realidade. Isso, curiosamente, é uma faca de dois gumes, pois trouxas detestam bruxos e vice-versa.
Hagrid, imponente, aparece filmado agora no ângulo de baixo para cima, em contra-plongée, dominante em cena. Ele avisa a Harry que ele é um bruxo e sua função como mentor na jornada do herói, que chama o protagonista para a aventura, é revelada. Isso, é claro, segue criando expectativas, que devem ser atendidas logo mais. Não demora para conhecermos o mundo bruxo, começando pelo Beco Diagonal, depois o banco Gringotes e, por fim, Hogwarts.
Todos esses ambientes são retratados com planos gerais que deixam em evidência o brilhante design de produção e efeitos visuais – os melhores do período. É embasbacante cada detalhe reproduzido aqui, criando uma sensação estranha que o mundo bruxo faz parte da antiguidade, mas que está inserido nos nossos tempos. Confesso que o que sempre achei mais brilhante na franquia são os quadros e figuras de jornal que se movimentam, o que demonstra que o mundo bruxo é completamente vivo. Até os mortos andam por corredores e isso captura a imaginação do público de formas que eu não consigo descrever.
É claro que muito disso vem da imaginação da nossa não tão querida assim escritora J.K Rowling, mas o processo para adaptar tudo diz respeito a questões de design que vão muito além do mundo literário, por mais descritiva que seja a obra. O tom colorido e vivo de Hogwarts em contraste com o azul que chega próximo ao roxo nas cenas que remetem a “Você-Sabe-Quem”, confere uma fotografia com um tom de contraste entre o perigo constante e a alegria de estar entrando no mundo dos bruxos e experimentando tudo intensamente, assim como Harry.
Além da constante criação de suspense utilizando muitas sombras e luzes bem pontuais (lembrem-se da cena de Harry no Olivaras e sua interação com a varinha), o diretor Chris Columbus usa alguns recursos bem interessantes em sua mise-en-scène durante todo o filme. Um em especial é o zoom in no rosto de personagens em situações chave, aproximando a emoção de quem está em cena ao público e, consequentemente, causando um aumento do drama. Outro recurso do cineasta é utilizar o ângulo holandês, ou seja, o entortamento do quadro para causar sensação de desorientação ou mesmo perigo. Isso ocorre, por exemplo, no momento em que Hagrid explica a Harry que ele é o menino que sobreviveu. A câmera, no plano geral inicial da cena, está no alto, torta, indicando que algo de tenso irá acontecer a seguir.
Nessa mesma sequência, o diretor volta a utilizar o suspense no flashback em que mostra a morte dos pais de Harry. Ele filma tudo em uma câmera lenta estranha, distante da fluidez habitual. Para deixar tudo ainda mais nebuloso, Columbus veste Voldemort com capuz negro e utiliza uma câmera sob os ombros do personagem maligno, como se estivéssemos acompanhando o campo de visão dele, nos colocando em seus olhos. Por conta desse estilo subitamente macabro, essa cena é para mim uma das melhores da produção, porque já deixa plantada a semente do quão sombria essa franquia vai se tornar em um futuro não tão distante.
Do ponto de vista da ação, o realizador faz algo que eu julgo muito interessante: colocar a câmera muito próxima de personagens que se movimentam, tornando a ação mais imersiva e palpável. O melhor exemplo para isso é o jogo de quadribol, em que a câmera persegue quem está com a bola, nos colocando dentro do jogo. Na cena do primeiro voo de Harry, ele e Malfoy saem de perto da multidão voando e ultrapassam a câmera, cruzando-a. Isso passa uma curiosa sensação de vertigem e de proximidade, muito bem emulada sem a necessidade constante de ficar tremendo o movimento da imagem a torto e a direito.
Além disso tudo, é claro que as grandiosas sequências são acompanhadas pela brilhante trilha musical de John Williams (outro colaborador frequente de Spielberg). Como Chris Columbus mira no cinema como espetáculo, é claro que cada ceninha, por mais besta que seja, tem notas do lendário compositor junto a ela. Acredito que qualquer diretor ficaria tentado a encaixar todas as músicas na narrativa, pois esse é um dos mais memoráveis trabalhos da carreira de Williams. As composições servem como um perfeito reforço a certas emoções essenciais para cada cena, seja algo cômico, dramático, sombrio ou mesmo, simplesmente… mágico.
Já o roteiro do longa é bom o suficiente, pois apesar de lidar com a jornada do herói – uma forma narrativa muito clássica –, o faz de maneira competente. O trabalho com os personagens poderia deixar a desejar, porque há muitos a serem trabalhados, mas Steve Kloves, o roteirista da produção, foca no protagonismo de Harry Potter e apenas trabalha com mais ênfase seus amigos mais próximos da Grifinória, Rony Weasley e Hermione Granger. A presença de coadjuvantes mais essenciais para a narrativa como Severo Snape, Minerva McGonagall e Alvo Dumbledore, professores de Hogwarts, também é bem trabalhada e sentida, com todos eles tendo um bom tempo de tela e construindo relações de diferentes naturezas com Harry.
Outro ponto muito positivo é o desenvolvimento da história pregressa do protagonista, o sacrifício de seus pais para salvá-lo e como isso transformou o vilão Voldemort em uma presença maligna que ano após ano se tornará mais forte. “Aquele que não deve ser nomeado” está presente em cada corredor escuro de Hogwarts e as cenas em que ele de fato aparece são memoráveis. Os 3 atos narrativos clássicos estão presentes com boas apresentações de personagens, um bom desenvolvimento de conflitos e um clímax excelente, que gera posteriormente uma conclusão satisfatória.
Talvez o único problema do texto, e também da montagem, seja a quantidade absurda de elementos que ele precisa lidar durante as 2 horas e 32 minutos de duração. O segundo ato parece maior que o habitual, com diversas coisas acontecendo de forma enfileirada. Quando chegamos ao clímax e inicio de terceiro ato, é perfeitamente compreensível que Harry voe muito bem e Hermione seja muito lógica, mas quando chegamos ao xadrez de bruxo, não temos uma cena anterior que justifique o quão bom Rony é no jogo, apenas uma no Natal que apresenta o game e mostra o personagem batendo Harry, o que parece um tanto insatisfatório de forma geral.
Também existe um ou outro equívoco no roteiro, como um grande desvio que o filme faz para apresentar o espelho de Ojesed. Desvio esse injustificado, pois Hermione simplesmente encontra uma solução para o mistério de quem é Nicolau Flamel em um grande livro na Biblioteca. Por que diabos, então, ela mandou Harry ir a Seção Restrita sem antes checar direito? As falhas, porém, são pequenas se comparadas ao grande desafio de apresentar um universo complexo e ainda por cima trabalhar bem os personagens chave.
Outro problema que há em Harry Potter e a Pedra Filosofal é a atuação do elenco mais jovem. Enquanto os veteranos Alan Rickman, Richard Harris, Maggie Smith e tantos outros são perfeitos em cada papel, Daniel Radcliffe, Rupert Grint, Emma Watson e o restante dos alunos sofrem um pouco em suas primeiras experiências como atores. É claro que isso é perfeitamente compreensível, tendo em vista que ainda eram muito jovens e seus papéis não são os mais complexos do mundo, às vezes precisando apenas de aspectos específicos de personalidade. Em alguns momentos, esses atores até demonstram certa verdade em seus personagens, mas de vez em quando a falta de experiência é bem notável. Atribuo isso muito mais a direção de atores do que aos próprios intérpretes, porque a função de extrair o melhor deles era de Chris Columbus e sua equipe e eles falham nessa tarefa em certas situações.
Muitos poderiam dizer também que o diretor usa as composições de John Williams como muleta para conseguir atingir as emoções certas, sendo incapaz de fazer isso por conta própria, mas eu discordaria desse argumento. É uma característica comum do cinema blockbuster que almeja o espetáculo usar muito a trilha musical, e isso não é necessariamente um demérito. Diretores consagrados também utilizam o mesmo tipo de estratégia, basta analisar os clássicos de aventura de Spielberg, a grandiosa trilogia do Batman de Christopher Nolan ou mesmo a ficção científica Duna, o mais recente trabalho do célebre Denis Villeneuve. Isso diz muito mais sobre o estilo desses diretores do que da incapacidade deles em trabalhar os sentimentos em seus filmes.
Apesar desses pequenos pesares, nada atrapalha a grande experiência que foi para mim e para muitas pessoas ver Harry Potter e a Pedra Filosofal nos cinemas (ou em qualquer lugar). O trabalho de Chris Columbus era muito complicado por ter que lidar com a pressão de estabelecer uma nova franquia, ao passo que tinha que lidar com a pressão da própria Warner. O diretor foi tão bem sucedido que gerou um novo clássico, um daqueles filmes que lembrarei enquanto for vivo e que celebrarei sempre que for possível (claro que vou assisti-lo mais 500 vezes pelo menos).
Harry Potter é e sempre será uma saga que fala sobre o valor da amizade, do respeito, de você entender quem você é no mundo e encontrar a felicidade nas pessoas ao seu redor. É também sobre a luta contra o fascismo e qualquer sistema ditatorial controlador. É sobre se rebelar contra as pessoas certas no momento certo, sobre se impor contra o preconceito, seja ele qual for. Nós não somos um bando de sangues ruins por não termos nascido em berço de ouro. Com o nosso esforço, companheirismo e coragem, podemos ir mais longe.
É claro que a própria escritora dessa maravilhosa saga se mostrou “alguém que não deve ser nomeado” na vida real. Se seu trabalho inspirou uma geração, seu comportamento retrógrado ataca os próprios fãs do mundo da magia. É simplesmente inaceitável que isso ocorra. Portanto, caro leitor, promovo a ideia de que você pode sim seguir amando Harry Potter, pois a obra, uma vez liberada ao mundo, é das pessoas, não mais do criador. E cada vez que J.K. Rowling aparecer destilando ódio, nós estaremos lá com nossas varinhas em punho para derrotar as artes das trevas e impedi-las de dominar o mundo.
Malfeito feito!
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Ficha Técnica
Título Original: Harry Potter and the Sorcerer’s Stone
Ano: 2001
Direção: Chris Columbus
Roteiro: Steve Kloves
Elenco: Daniel Radcliffe, Emma Watson, Rupert Grint, Tom Felton, Robbie Coltrane, Maggie Smith, Alan Rickman e Richard Harris
Fotografia: John Seale
Montagem: Richard Francis-Bruce
Trilha Sonora: John Williams
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