Casa Gucci | Nos Cinemas

 

Ridley Scott surpreendeu a todos com seu filme O Último Duelo, que estreou em outubro. O diretor conseguiu aquele raro equilíbrio de clássicos como Alien, O Oitavo Passageiro, onde expõe a violência contra a mulher, denunciando isso de forma contundente, além de ser montado de maneira a sublinhar a força da narrativa e atingir um clímax apoteótico, cheio de elementos emocionais e que trazem a catarse necessária para sairmos do cinema genuinamente impactados com a experiência.

A supressa logo se transformou em expectativa para o seu trabalho seguinte, Casa Gucci, que contém grandes nomes em seu elenco e a mesma equipe criativa do longa anterior. De quebra, a produção ainda se baseia no livro “Casa Gucci: Uma História de Glamour, Cobiça, Loucura e Morte”, de Sara Gay Forden, que conta uma história real muito intrigante: a do assassinato de Maurizio Gucci por sua ex-esposa Patrizia Reggiani, em 1995, além da ascensão e queda de todo o império Gucci e sua reconstrução com novos donos.

É com uma nota de pesar que afirmo que Casa Gucci não sobrevive às expectativas que gerou. Ridley Scott até que consegue ser bem sucedido no primeiro ato de sua trama, mas a produção começa a despencar ladeira abaixo enquanto progride.

Mas calma, vamos por partes.

O filme começa quando Maurizio (Adam Driver) e Patrizia (Lady Gaga) se conhecem em 1970. A paixão do casal é muito bem retratada pelo diretor, com cenas divertidas dos dois passeando e realizando tarefas banais em belas locações na Itália. Além dos planos gerais destacados que se alternam com planos íntimos (e até mesmo sexuais) bem próximos dos personagens – que tem por função explorar o sentimentalismo –, o cineasta enche aquele universo de músicas pop italianas e americanas das mais diversas, o que dá uma sensação inicial de que estamos vendo uma comédia romântica leve e descontraída.

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Contudo, é claro que Scott não se contentaria com algo tão simples. Logo o diretor anuncia uma variação de tom e muda para um drama familiar semelhante em estrutura ao que vemos em filmes como O Poderoso Chefão, apresentando o restante da família que comanda o império Gucci. Surgem Rodolffo (Jeremy Irons), pai de Maurizio, que tem um grande atrito com o filho por conta de seu romance com Patrizia; Aldo (Al Pacino), o presidente da Gucci e um dos responsáveis pela ascensão da marca a nível mundial; e Paolo (Jared Leto), o filho idiota de Aldo que aspira se tornar um grande estilista.

A partir disso, um jogo político começa a se estabelecer ao mesmo tempo em que as relações entre os personagens se desenvolve, até que a ganância de cada um deles por poder vai corroer a Gucci até os ossos. Scott teria sido muito mais bem sucedido se, após o início com ares de comédia romântica e sua transição para um drama criminal, tivesse mantido essa narrativa mais séria, porém, o realizador inventa uma terceira variação tonal para seu filme: o pastiche, que é, na realidade, uma tentativa equivocada de sátira ao universo da moda.

A produção ocasionalmente rompe com a seriedade proposta em sua fotografia de tons dessaturados para apresentar momentos cômicos e bregas que beiram o ridículo. O cineasta aqui não consegue de forma bem sucedida transitar entre esses dois tons e faz uma mistureba indigesta, em que não há organicidade, quase como se Scott estivesse tentando fazer um suco com água e óleo no mesmo copo.

A personificação dessa confusão é Paolo Gucci, interpretado de forma tenebrosa por Jared Leto. Seu papel é o do bobão ganancioso e manipulável, que tenta tirar uma lasquinha da empresa do pai, Aldo. O personagem não funciona nem como uma espécie de alivio cômico deturpado e nem como uma pessoa cheia de aspirações que clama por uma oportunidade, de forma dramática. Paolo acaba se transformando em um mero dispositivo de roteiro que serve para avançar a trama, ocasionalmente destruindo cenas importantes que deveriam ser dramaticamente fortes. Agradeçam também às caras e bocas de Leto, que possui o pior sotaque italiano que eu já ouvi.

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Essa esquizofrenia tonal da obra acaba anulando muito do que Adam Driver traz para o seu Maurizio Gucci. O ator parece desconfortável em tela, não conseguindo encontrar um meio termo entre a parte dramática e cômica de suas cenas, principalmente quando ele tem que contracenar com Leto ou mesmo com Lady Gaga. A atriz, por sua vez, encontra um bom equilíbrio para a sua Patrizia Reggiani, atingindo, em grande parte do filme, as notas certas de acordo com as intenções de seu diretor.

Gaga, porém, não acerta tudo, passando do ponto na caricatura em determinados momentos chave, principalmente nas partes finais onde sua personagem está em crise conjugal com Maurizio. Ali o filme pedia uma habilidade dramática maior, mas Gaga entrega apenas o teor ridículo, o que causa um desequilíbrio às cenas. A culpa, no entanto, se estende ao diretor, pois ele tinha a função de direcionar sua atriz para a chave correta, mas pesa a mão no exagero melodramático que o filme em outros momentos não apresenta.

Dentro do elenco, apenas Al Pacino e Jeremy Irons entregam atuações de gala. O primeiro tem em seu Aldo Gucci uma mistura de um bon vivant excêntrico e líder austero que parece uma versão de Michael Corleone às avessas. Pacino parece se divertir em suas cenas cômicas e entrega o que esperamos de um dos melhores atores americanos da história do cinema. Já Irons tem um tom predominantemente dramático para trabalhar em seu personagem, mas ele tira de letra e entrega um Rodolffo Gucci respeitável, embora um tanto frustrado com os rumos de sua vida.

O roteiro de Casa Gucci também possui um problema crucial: um recorte muito grande do tempo para a trama. Os eventos do filme ocorrem através de duas décadas, e é evidente que isso colocaria um sem fim de informações que exigiria um equilíbrio muito bom entre desenvolvimento de personagens, estabelecimento de obstáculos e de pontos de virada para o inevitável clímax de conhecimento público. Esse equilíbrio não aparece.

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O texto não desenvolve arcos de forma bem sucedida, pois ele se preocupa muito com diversos outros elementos. Existem momentos em que personagens mudam da água pro vinho, como é o caso de Maurizio e da própria Patrizia, sem um trabalho ou mesmo justificativa adequada, principalmente por conta da má gestão dos inúmeros acontecimentos entre os anos 70 e 90.

Alguns coadjuvantes (a própria Patrizia, em dado momento) também são esquecidos complemente durante um período da rodagem só para retornarem um bom tempo depois, o que tira o peso de suas participações. Quanto mais Scott força os rumos da trama para o fim do império Gucci, mais ele se afasta do núcleo humano de sua produção.

É claro que isso também se mostra um problema de montagem, pois a obra é incapaz de estabelecer uma crescente de tensão até culminar no trágico clímax, algo que a montadora Claire Simpson havia conseguido com brilhantismo em O Último Duelo. O segundo ato de Casa Gucci tem uma enorme barriga, um marasmo que só é cortado quando a trama apresenta um súbito ponto de virada (mal explorado, por sinal) em que o ritmo é retomado.

Até mesmo a divertida mise-en-scène de Ridley Scott no primeiro ato, com um romance cheio de química entre Gaga e Driver, uma fotografia com tons fortes de amarelo para demonstrar a felicidade do casal e uma trilha musical que deixa tudo com um aspecto pop nostálgico, deixa de ser novidade no segundo ato e lentamente se transforma em algo enfadonho a medida em que o filme avança enquanto pastiche. O diretor segue nessa toada até o fim, o que acaba, eventualmente, cansando.

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Um outro problema que notei é o fato do diretor objetificar muito o corpo de Lady Gaga. A primeira cena em que Patrizia aparece é ela caminhando enquanto a câmera percorre seu corpo lentamente. Uma tentativa enfadonha do diretor de mostrar que a personagem tem uma grande beleza, inclusive mostrando vários assobios masculinos, um ato que pode ser considerado como assédio.

Existem pelo menos mais duas cenas em que o problema persiste, com Scott filmando em ângulos por traz de Gaga para mostrar sua bunda, além de uma terceira cena em que o realizador mostra a atriz de calcinha e sutiã sem motivo algum, enquanto Adam Driver na mesma cena está muito bem vestido. É lógico que esse problema da visão objetificadora masculina no cinema não é exclusivo de Casa Gucci ou de Ridley Scott, mas é algo que deve ser combatido em todas as frentes, pois cinema pode ser construído de inúmeras formas. No entanto, diretores em via de regra sempre preferem o olhar de desejo voyeurístico sobre suas personagens, tornando-as meros objetos de desejo.

A produção até apresenta pontos técnicos a se elogiar, como o belíssimo design de produção que trabalhou de maneira competente com castelos, mansões, lojas e tudo o que deixa explícito o modo de vida exagerado da família Gucci. O que mais impressiona são os figurinos e maquiagem soberbos, que transformam os atores em figuras muito próximas às reais, além de replicarem de maneira perfeita peças importantes da marca de luxo.

Toda essa perfumaria, todavia, acaba não escondendo o teor medíocre do filme de Ridley Scott. O diretor perde o foco centenas de vezes e pune a sua produção com elementos estilísticos que não se conversam e geram tons dissonantes entre si. O cineasta segue mantendo sua sina de fazer um bom projeto a cada dez anos e dezenas de outros medíocres (sendo bondoso com ele). Casa Gucci é um filme que milagrosamente transita na linha tênue entre Oscar e Framboesa de Ouro.

Realmente uma tragédia que só é comparável à história real dos Gucci.

Nota: ★★✰✰✰

 

Ficha Técnica

Título Original: House of Gucci

Ano: 2021

Direção: Ridley Scott

Roteiro: Becky Johnston, Roberto Bentivegna

Elenco: Lady Gaga, Adam Driver, Jeremy Irons, Al Pacino, Jared Leto, Salma Hayek

Fotografia: Dariusz Wolski

Montagem: Claire Simpson

Trilha Sonora: Harry Gregson-Williams

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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