The Beatles: Get Back | No Disney+
Quem nunca ouviu falar em The Beatles? Qual ser humano com idade suficiente para conhecer um pouco de cultura popular nunca escutou uma música deles? Considerada por muitos a melhor e mais importante banda de todos os tempos, Peter Jackson teve a difícil tarefa de conceber um documentário com mais de 60 horas de gravações em janeiro de 1969 que foram filmadas pelo diretor Michael Linday-Hogg.
Em apenas 10 minutos, essa produção do Disney+ resume e estabelece a história do consolidado grupo inglês até o momento mencionado. O diretor é bem rígido no que tange à estrutura temporal: quase nunca presenciamos um flashback; muito pelo contrário, além da ordem ser cronológica, existe até a escolha artística de sempre mostrar o calendário ao espectador com o exato dia da semana de janeiro — algo que expõe o brilhante trabalho tanto de Jackson como do montador por conseguir estabelecer uma lógica narrativa com tantas horas de filmagem que foram belamente restauradas.
O próprio título do documentário, além de fazer uma óbvia referência da canção composta por Paul McCartney (que seria descartada como possível nome do álbum), adquire um viés nostálgico por fazer os fãs voltarem ao passado e entenderem o que se passou naquele curto e intenso intervalo de tempo.
É absolutamente estonteante ver canções tão famosas e queridas serem criadas e registradas diante de nossos olhos. Algumas músicas não serão utilizadas para o álbum “Let It Be”, algumas serão colocadas no último álbum gravado (Abbey Road) e outras irão aparecer em suas respectivas carreiras solos, incluindo a icônica faixa-título “All Things Must Pass”.
O suposto papel de liderança de Paul e os naturais conflitos com o fato de ser tão metódico por conta da apertada deadline (os Beatles deveriam ter músicas inéditas suficientes para que a planejada apresentação ao vivo ocorresse) são evidentes, mas nunca algo que afetasse por completo o clima amigável do grupo — ainda que um deles chegue a brincar sobre um possível “divórcio”.
Contudo, é interessante visualizar George Harrison comentar sobre o desejo de uma participação mais ativa durante o processo criativo ao ponto de falar que o álbum anterior foi o que se sentiu mais útil, ressaltando a influência que teve com Eric Clapton em relação aos improvisos e solos, consequentemente, aproximando-se ainda mais do jazz e blues.
O momento mais marcante do documentário de 1969 (vencedor do Oscar na categoria de melhor trilha sonora) é a de George afirmando que faria o que Paul quisesse para agradá-lo, incluindo aí até mesmo não tocar para que tudo desse certo. Entretanto, aqui vemos o segmento completo da conversa, onde também fica bem claro o incômodo de Paul em carregar praticamente todo o peso da responsabilidade.
Ao mesmo tempo em que parece estar bem à vontade com seus amigos, aquilo parece ser um fardo gigante para suportar sozinho, já que John Lennon era visto como líder por ter o chamado para participar do grupo, mas essa esperada postura foi se enfraquecendo ao longo dos anos.
Com isso, o diretor neozelandês, de maneira inteligente, encerra a parte 1 com “Isn’t It A Pity” (canção de Harrison que foi produzida nessa época, mas recusada pela banda) para ressaltar a distância de George com Lennon/McCartney, já que ambos monopolizaram os álbuns com suas canções e não havia tanto espaço para outro compositor.
Os 40 minutos iniciais da parte 2 não há a presença de George Harrison. A sensação que se tem é que não existe banda sem a presença de um dos quatro, portanto, essa ausência é profundamente sentida de uma forma ou de outra. Como se não bastasse, existe a polêmica em torno de Yoko Ono. Considerada pela maioria do público como a grande culpada de tudo, apesar da mesma ser uma figura quase onipresente, não presenciamos uma interferência direta dela no desenvolvimento criativo ou uma visível indisposição dos outros três.
Paul, com os olhos marejados de lágrimas, comenta num certo momento só para Ringo Starr e alguns produtores que John sabe o que faz, mas que escolheria sua mulher ao invés dos Beatles. É quase que um deslumbre do futuro: ela nunca foi a culpada, mas sim a longa estrada que os tornaram adultos, ficando cada vez menos juntos para compor.
O desentendimento com Harrison é finalmente resolvido, tendo mudanças drásticas na condução artística do projeto: não haverá mais qualquer tipo de apresentação para o público, as músicas não terão overdubs, e também a transferência dos ensaios para o estúdio da Apple no centro de Londres.
A fama das personalidades irônicas e cômicas faz jus a realidade porque até mesmo quando saíam notícias sobre seus respectivos problemas, algum deles (Paul e John, principalmente) liam num tom musical para evidenciar a mentira que foi escrita ou, obviamente, para atenuar o ambiente de um assunto tão sério.
E há coisas que não tem como explicar se não o destino: a chegada de um antigo amigo tecladista chamado Billy Preston (que foi lá para cumprimentá-los) acaba virando uma contribuição essencial não somente para o disco, como também para melhorar mais ainda a harmonia dos ensaios — culminando até num breve e carinhoso momento, onde Lennon o posiciona como um quinto Beatle.
Pequenos momentos, porém, simbólicos, são colocados também no longa. Seja a doce presença de Heather (filha de Paul) no estúdio com Linda McCartney, Ringo recebendo ajuda com sua canção “Octopus’s Garden” ou até mesmo George expondo sua vontade para John de criar um álbum solo e, simultaneamente, contribuir com os Beatles.
A grande dúvida era sobre o que iriam fazer: é um documentário sobre a criação do álbum, mas para o momento não existia uma narrativa, apenas registros. De certa forma, havia uma desorganização porque eles tinham canções para fazer um álbum ao vivo, mas não tempo necessário para ensaiar todas nessa curta programação estabelecida.
Além disso, a decisão de fazer o show no terraço da Apple foi só decidida um dia antes de acontecer e, ainda assim, eles não estavam totalmente decididos com a ideia no dia.
E ainda bem que não desistiram de fazer. Jackson, nos últimos 40 minutos, brinda o espectador com o show mais icônico da história do rock and roll. É bem verdade que foi curto (as autoridades policiais do local, infelizmente, tiveram que intervir), mas foi marcante porque os quatro não faziam uma apresentação ao vivo desde 1966.
Todo o segmento, de forma constante, faz um paralelo do show em si com as reações do público, como também dos policiais que lidaram com a emblemática situação. Gostando ou não dos Beatles, era impossível não ter algum tipo de reação a tamanha magnitude. Homens e mulheres de todas as idades e crianças paravam para escutá-los.
Quantos documentários são capazes de mudar a percepção e senso comum de algo popular? Aqui temos um desses exemplos em que até mesmo os maiores fãs dos Beatles terão uma perspectiva diferente do que se passou naquela época.
No fim, nos sentimos como um amigo próximo daqueles quatros artistas de Liverpool por presenciar tantos registros íntimos, incluindo áudios que nem supostamente deveriam ser gravados.
Uma banda que terminou há mais de 50 anos, mas que ainda mantém gerações com uma imensa paixão e curiosidade por mais. Sempre mais.
Coisa mais linda que isso não há.
Para assistir o documentário no Disney+, é só clicar aqui.
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica
Nome Original: The Beatles: Get Back
Ano: 2021
Direção: Peter Jackson e Michael Linday-Hogg
Elenco: John Lennon, Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr, George Martin, Billy Preston, Linda McCartney, Yoko Ono, Mal Evans
Montagem: Graham Gilding, Peter Hollywood, Tony Lenny e Jabez Olssen