Ataque dos Cães | Na Netflix
Atenção, esse texto pode conter spoilers. Leia por sua conta e risco!
Deliver my soul from the sword; my darling from the power of the dog.
1925. Montana, Estados Unidos. Em um rancho de gado no meio do nada, cercado por montanhas e muita poeira, Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) e George Burbank (Jesse Plemons) são dois irmãos de personalidades e físicos totalmente diferentes. O primeiro é inteligente, dominador, atlético, controlador, rústico, totalmente imergido naquela realidade. Já o segundo é o oposto, pois, ainda que tenha crescido no mesmo ambiente que o irmão, foi traçando o caminho oposto de sua personalidade. Ele é mais sensível, não se envolve com o trabalho braçal, é bondoso, gentil e empático.
Contudo, ambos ainda dividem o mesmo quarto e há 25 anos fazem o “grande pastoreio”, que é levar uma enorme quantidade de gado pelo território selvagem local até a cidade. Claramente, George já não se sente mais parte desse estilo de vida, demonstrando não estar nada feliz com essa obrigação. Phil, por outro lado, mostra empolgação e ansiedade. Para George, essas décadas pesam, para Phil não, parece que tudo começou ontem.
Ao sentir que o irmão já não está mais tão presente como antes – algo inadmissível para Phil –, ele o humilha e o relembra de uma figura essencial para o sucesso dos negócios que os ensinou absolutamente tudo: Bronco Henry. Bronco Henry para Phil é uma figura onipresente. Morto há mais de 20 anos, é alguém que simplesmente não saiu da vida dele (Phil mantém em um altar uma cela de Bronco no celeiro), e ele insiste em sempre relembrar o nome do homem e demonstrar o quão importante e lendário ele foi.
Nesse mesmo dia, os irmãos juntos dos vaqueiros que auxiliam no pastoreio vão jantar numa pequena hospedagem. O local é comandado pela recém viúva Rose (Kirsten Dunst) e seu filho, Peter (Kodi Smit-McPhee). Na primeira oportunidade que tem, Phil humilha o jovem, que visivelmente se difere de todos ali dentro, e leva a mãe do menino às lágrimas na cozinha. Diante da covardia e violência do irmão, George se compadece de Rose e a consola.
Na manhã seguinte, ele retorna ao estabelecimento para vê-la e se oferece para ajudá-la com os clientes, ganhando a simpatia dela pelo ato de gentileza. Voltando tarde para casa, ele se depara com Phil o esperando, que não gosta nada do reencontro dos dois e afirma que ela só quer o dinheiro deles. George ignora e vai dormir. Focado em acabar com esse romance, Phil escreve para a mãe como forma de barrar a aproximação dela e do irmão, o que não adianta de nada. Buscando cada um romper com a sua própria solidão, os dois se casam e a viúva vai morar no rancho.
A partir desse momento, Phil vai fazer a vida dela um inferno e aterrorizar psicologicamente dia após dia a esposa de seu irmão. No entanto, com a chegada do verão e de Peter ao local para passar as férias, segredos envolvendo a figura de Bronco Henry e Phil serão revelados e as dinâmicas daquele microuniverso vão começar a mudar. O outrora predador vai passar, aos poucos, a ser presa.
Em Ataque dos Cães, baseado no livro “The Power of the Dog” escrito por Thomas Savage, a diretora e roteirista neozeolandesa Jane Campion (O Piano) – no seu retorno à cadeira de direção após mais de dez anos longe do cinema – pega esse espaço isolado e rústico para fazer um excepcional estudo sobre poder e domínio. Phil é a figura central disso, afinal, tudo tem que ser do jeito dele, as pessoas têm que agir como ele quer e qualquer um que ouse enfrentar ou duvidar de sua autoridade vai sofrer as consequências.
Todos ali acabam sendo afetados por esse autoritarismo de Phil. George tem pavor do irmão, e quando precisa dizer algo que ele sabe que o personagem de Cumberbatch não vai gostar de ouvir, se expressa de forma mansa e cabeça baixa, como se estivesse implorando para não ser devorado. Os vaqueiros do local o obedecem como se fossem cães, com Phil os tendo totalmente na mão sob sua vigilância e influência. Os pais deles também não têm coragem de o contradizer, se anulando tal qual George.
Uma vez casada com seu irmão e indo morar no rancho, Rose passa a ser a sua mais nova vítima. Simbolizando uma mudança na ordem estabelecida, com seu irmão saindo da sua zona de influência e poder ao contrariá-lo, Phil vai querer esmagar aquela “invasora”. Para isso, usará o terror psicológico como sua arma. Após uma passagem do tempo, vemos o efeito em Rose da tortura feita pelo cunhado: ela passa o dia bebendo e evita ao máximo cruzar o caminho dele.
Com a chegada de Peter ao rancho para passar o verão, gradativamente o espectador começa a entender melhor as razões para Phil ser tão cruel, vil e frio. Em Ataque dos Cães, Campion coloca o adolescente como aquele que vai desbravar os mistérios do vaqueiro e descobrir o que aconteceu no passado dele, que até aquele momento o afeta. A medida em que o personagem de Cumberbatch é atormentado por aquilo que tem dentro de si, ele despeja sua raiva em todos aqueles que orbitam a sua volta. Especialmente quando essa pessoa ameaça as regras estabelecidas por ele. O que pode ter acontecido para levá-lo a querer fazer a vida de todos a sua volta um verdadeiro inferno?
Da mesma maneira, também é possível descobrir mais sobre Peter. A princípio, alvo constante de piadas e humilhações por Phil e seus “cães”, o garoto será usado pelo protagonista como arma para aterrorizar mais ainda Rose. Forjando uma aproximação com ele, o vaqueiro vai atraindo Peter para seu imã de influência e poder, apavorando a nora. No entanto, diferente dos outros, há algo no jovem que, de certa forma, surpreende Phil. E, aos poucos, ele vai criando algum tipo de conexão e respeito pelo garoto, enxergando nele algum grau de semelhança ou lembrança de um passado distante. É nesse momento que Campion começa a mostrar uma inversão de papéis e escancarar quem é quem de fato por baixo de tantas camadas. A diretora demonstra total controle sobre o projeto sabendo exatamente o que quer com Ataque dos Cães, e a sua direção aqui é, até o momento, a melhor do ano.
Para além da qualidade do trabalho de Jane Campion, o elenco de Ataque dos Cães é simplesmente impecável. Para personificar Phil, Benedict Cumberbatch abraça aquela personalidade tão selvagem, violenta e opressora. Sua característica voz é ferramenta essencial para o estabelecimento da sua autoridade assim como o seu olhar. Ele enxerga quem está na sua frente como uma presa, como se estivesse se preparando para dar o bote. É uma atuação intensa, animalesca e assustadora, que é filmada por Campion em um ângulo de baixo para cima, reforçando esse caráter de superioridade que o personagem dá a si mesmo.
Igualmente brilhante está Kirsten Dunst. Como vítima de Phil, vemos Rose constantemente apavorada e insegura, e, assim como Cumberbatch, a atriz com o olhar diz absolutamente tudo. Sua expressividade e postura igualmente. Ela é um misto constante de infelicidade, sofrimento e medo. Ser vítima do terror psicológico de Phil vai fazendo Rose definhar e Dunst demonstra isso de forma perfeita.
Por fim, o trabalho de Kodi Smit-McPhee é bem paciente no sentido de, sob seu total controle, Peter ir se revelando sutilmente nas suas intenções. O peso da responsabilidade de proteger a mãe após a morte do pai o leva para um caminho de manipulação que terá consequências extremas.
Em meio a esse espaço isolado no estado de Montana em que Ataque dos Cães se passa, a fotografia de Ari Wegner unida à direção de Jane Campion transforma aquele lugar imenso cercado por colinas e um céu gigantesco, que poderia simbolizar liberdade, numa prisão em que os personagens estão cada vez mais sufocados pela onipresença de Phil. Paralelamente a isso, em alguns takes o personagem é filmado por uma janela ou o portal de uma porta/portão, o que dá a entender, ao longo do filme, que há algo aprisionado dentro do protagonista. Outro destaque vai para a trilha sonora de Johnny Greenwood, que consegue expressar através da música a áurea tensa e sufocante das relações dos personagens entre si e com o ambiente inóspito em volta.
Ataque dos Cães é um retorno triunfal de Jane Campion ao cinema. Seu estudo sobre dinâmicas de poder e dominação é um dos melhores filmes do ano e chega forte no Oscar como principal candidato da Netflix. Com personagens complexos muito bem desenvolvidos, inseridos num ambiente hostil pelo roteiro sutil da diretora, temos aqui um potente relato sobre medo, impotência, manipulação, terror psicológico e controle.
Estabelecido o predador, quem será a próxima presa?
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Nota: ★★★★★
Ficha Técnica
Título Original: The Power of the Dog
Ano: 2021
Direção: Jane Campion
Roteiro: Jane Campion
Elenco: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons, Kodi Smit-McPhee, Thomasin McKenzie, Genevieve Lemon, Keith Carradine, Frances Conroy
Fotografia: Ari Wegner
Montagem: Peter Sciberras
Trilha Sonora: Jonny Greenwood