Amor, Sublime Amor | Nos Cinemas
Sessenta anos separam o remake de Amor, Sublime Amor, dirigido por Steven Spielberg – em seu primeiro musical –, da primeira adaptação para os cinemas do clássico da Broadway, dirigido por Robert Wise e Jerome Robbins, e vencedora de 10 Oscars (incluindo Melhor Filme). De lá para cá muito tempo passou e a necessidade de se garantir a representatividade do jeito certo nos filmes foi ganhando mais destaque e importância.
Por conta disso, a nova versão chega à tela grande com o intuito de homenagear a obra original e corrigir seu principal problema: atores brancos interpretando personagens latinos. Em seu filme, Spielberg fez questão de escalar atrizes e atores de origem latina para interpretar os personagens porto-riquenhos.
Só por essa mudança o remake já justifica a sua existência, diferente da grande maioria que tem por aí. No entanto, isso não significa que em outros quesitos o filme supere o de 1961 e também não tenha problemas para serem chamados de seus. Ou melhor, problema, no singular. E o nome dele é Ansel Egort.
A história permanece a mesma. Em Amor, Sublime Amor acompanhamos a rivalidade entre os Jets e os Sharks, duas gangues de rua compostas por jovens de diferentes origens étnicas. Os membros do primeiro grupo são brancos, majoritariamente de origem polonesa e irlandesa, e os membros do segundo grupo são latinos, oriundos de Porto Rico. O jovem protagonista Tony (Ansel Elgort), ex-integrante dos Jets e melhor amigo do líder da gangue Riff (Mike Faist), se apaixona por Maria (Rachel Zegler), irmã de Bernardo (David Alvarez), o líder dos Sharks, recém chegada na cidade. Como consequência dessa paixão, as tensões entre seus respectivos grupos se transformará em tragédia.
Com fortes inspirações em “Romeu e Julieta” de William Shakespeare, o romance entre os jovens protagonistas é central e essencial no filme. A paixão acontece de forma avassaladora, à primeira vista, e para que o espectador abrace esse sentimento e torça pelos dois é imprescindível que o casal tenha química e magia suficientes. Infelizmente, ainda que a atuação de Zegler seja encantadora e angelical, Elgort tem o carisma de uma porta.
Toda sequência em que ele aparece (especialmente cantando) perde impacto e provoca o tédio. Sua falta de expressão e energia drenam todo o interesse no personagem e, consequentemente, atrapalha demais a força da história de amor entre Tony e Maria. Como toda a tensão da história é catalisada pelo início da relação dos dois, a partir do momento em que ela não funciona, há um “efeito dominó”. E somente no terceiro ato, quando o personagem aparece menos e a história ganha contornos mais dramáticos para além do romance, o longa consegue se desvencilhar da bola de ferro que é a atuação de Elgort e engata.
Por outro lado, no extremo oposto, Amor, Sublime Amor tem um furacão em forma de atriz e ela se chama Ariana DeBose. Dançarina profissional, além de cantora e atriz vinda diretamente da Broadway, ela é um acontecimento no filme. Energética, intensa, apaixonante e totalmente entregue à personagem, sua Anita é, sem dúvidas, a melhor coisa do remake. Se o mundo for justo, DeBose vai receber, pelo menos, uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante.
E por falar nisso, temos a presença de Rita Moreno no longa, atriz que interpretou Anita na versão de 1961. Aqui, ela faz outra personagem, Valentina, substituindo Doc, que está presente no musical original. A veterana tem uma participação importante e bastante emocionante, sendo uma das principais mudanças trazidas por Spielberg e o roteirista Tony Kushner para o projeto.
Outro elemento novo presente é o debate sobre gentrificação. De acordo com o professor da Unifesp Alvaro Luis dos Santos Pereira em seu texto “A gentrificação e a hipótese do diferencial de renda: limites explicativos e diálogos possíveis”, a expressão “deriva do substantivo inglês gentry, que designa indivíduos ou grupos ‘bem nascidos’, de ‘origem nobre’. Assim, foi concebida originalmente para fazer referência a um processo de elitização ou de ‘enobrecimento’ de determinados lugares da cidade, anteriormente caracterizados como áreas predominantemente populares”¹.
Possíveis razões para a ocorrência desse processo estão em mudanças culturais (ressignificando o caráter “marginal” de certas partes da cidade), em obras governamentais e na consequente especulação imobiliária.
No caso do filme, a população desses bairros é composta por imigrantes, especialmente latinos. Nessa batalha pelo domínio do espaço para além da disputa entre os Jets e os Sharks, há também a pressão do Estado para a saída dessas pessoas. E o longa questiona se essa briga entre os dois grupos se justifica quando o futuro está sinalizando que, no fim, não haverá mais território algum a ser disputado. E o que é uma gangue sem território?
Além disso, o tema da imigração (presente no filme de Wise e Robbins) permanece atual e extremamente relevante. Os problemas enfrentados pelos imigrantes latinos nos Estados Unidos continuam de modo igualmente grave ou pior. Mesmo que Porto Rico seja um território não incorporado dos EUA e seus cidadãos tenham direito ao passaporte americano que permite que eles entrem no território do país, a ilha passa por um grave problema financeiro somado ainda aos estragos causados pelo furacão Maria, de 2017, que ainda não foram resolvidos.
O preconceito, a exploração, o subemprego, a pobreza e marginalização, ainda fazem parte do dia-a-dia de muitos porto-riquenhos, ainda mais com a crise migratória em curso nesse momento. Isso torna a existência do remake de Spielberg ainda mais justificada, só que dessa vez abrindo um espaço ainda maior para se debater sobre o tema, trazendo à tona o já citado processo de gentrificação, por exemplo.
Continuando a sequência de mudanças em relação ao material original, Amor, Sublime Amor tem a preocupação de desenvolver melhor os personagens coadjuvantes, que no original não possuem muito contexto. No caso, Anita, Bernardo e Riff são os que mais ganham com isso. O que outrora eram pessoas sem muita profundida na trama, agora eles têm motivações para além do básico. Isso não apenas enriquece o longa dando mais urgência e estofo aos conflitos, mas também corrige outro problema que existia na versão de 1961.
Como dito anteriormente, esse é o primeiro musical dirigido por Steven Spielberg. E na sua estreia no gênero, o diretor faz um bom trabalho ao optar por atualizar alguns números musicais e por filmá-los de forma macro, com a câmera sempre buscando explorar as coreografias espetaculares como um todo e também a escala das sequências.
Um exemplo disso está na música “America”. Em 1961, ela se passava em um terraço, limitando o espaço das sequências de dança. Já aqui, de forma inteligente, ela sai do prédio e vai percorrendo as ruas do bairro. Com isso, aos poucos se vai ganhando mais e mais dançarinos com o tempo, deixando a cena mais fluida, imponente e impactante.
Já na cena do “Mambo”, que é puramente instrumental, da mesma forma que a versão antiga, Spielberg a filme de modo empolgante. Ela impressiona pela complexidade dos passos de dança entre quem está em cena. É em meio a ela que Maria e Tony se conhecem, e o diretor (ainda bem!) opta por não manter aqueles efeitos estranhos do original e prefere algo que remete a um sonho, cuja fotografia comandada por Janusz Kamiński escurece o que está a volta de cada um deles, colocando em segundo plano, e os destaca em meio a multidão dançante.
Em “Maria”, Spielberg a modifica para que o próprio nome da jovem em eco guie Tony pelas ruas e vielas até a sacada do prédio onde a jovem mora. É uma decisão poética e belíssima do diretor. Contudo, como ela é cantada por Elgort (por mais linda e apaixonante que seja sua letra), o ator a performa sem emoção e paixão. Por sorte, em “Tonight”, como ele divide os vocais com Zegler, as coisas melhoram e ela carrega a música nas costas com sua voz maravilhosa. Por fim, o diretor ainda guardou uma surpresa para a canção “Somewhere”, que é cantada por outro personagem de forma muito tocante.
Amor, Sublime Amor de Spielberg corrige alguns problemas presentes na versão de 1961 e mantém a mensagem forte do amor sobre o ódio, abrindo espaço para falar sobre gentrificação e aprofundar o tema da imigração, mas não encanta. A presença de Ansel Elgort como Tony tira toda a potência do amor impossível entre o personagem e Maria, o que é quase fatal para o filme.
No entanto, o longa tem no restante de seu elenco sua maior qualidade, com destaque para a atuação deslumbrante de Ariana DeBose. Além disso, as mudanças, especialmente em relação a representação dos personagens porto-riquenhos, e algumas sequências musicais trazem muito energia e escala para o filme, garantindo que a obra não afunde como um todo.
OBS. 1: para quem for assistir o filme nos cinemas, vai perceber que a legenda não traduz ao pé da letra as músicas que estão sendo cantadas. Isso acontece porque a distribuidora, aparentemente, tomou a decisão de seguir as traduções de Amor, Sublime Amor da adaptação feita para os palcos brasileiros. Isso causou bastante incômodo, pelo menos na minha experiência.
OBS. 2: as falas em espanhol, por decisão criativa do diretor Steven Spielberg, não são legendadas. Segundo ele, “Se eu legendasse as falas em espanhol estaria simplesmente colocando o inglês acima dele. Isso não poderia acontecer neste filme, precisávamos respeitar o idioma o suficiente para não legendá-lo”.
Nota: ★★★✰✰
¹ PEREIRA, Alvaro. A gentrificação e a hipótese do diferencial de renda: limites explicativos e diálogos possíveis. Cad. Metrop., São Paulo, v. 16, n. 32, p. 307-328, nov, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cm/a/y3jWyRYFZcMxkNtTgWVnf8S/?lang=pt. Acessado em: 13 dez. 2021.
Saiba mais sobre o processo de gentrificação de Nova York e outras cidades:
- “Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano“, de Neil Smith. GEOUSP – Espaço e Tempo, 2017. Leia aqui.
- “O direito à cidade“, de David Harvey. Revista Piauí, 2013. Leia aqui.
Ficha Técnica
Título Original: West Side Story
Ano: 2021
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Tony Kushner
Elenco: Ansel Elgort, Rachel Zegler, Ariana DeBose, David Alvarez, Mike Faist, Rita Moreno
Fotografia: Janusz Kamiński
Montagem: Michael Kahn, Sarah Broshar
Trilha Sonora: Leonard Bernstein