Drive My Car | Nos Cinemas
Nem um filme ruim é curto o bastante, assim como um bom filme não é longo o bastante.
Sou fascinado pelo cinema japonês, principalmente pela forma como os autores da “terra do sol nascente” conseguem trazer humanidade e intimidade a diálogos e situações simples e diretas. Um bom filme japonês sempre vai te proporcionar um mix de sentimentos muito forte e, na maioria das vezes, nós não estamos preparados para o baque.
O diretor Ryûsuke Hamaguchi nos entrega uma adaptação de um conto do livro “Homens sem Mulheres”, do brilhante escritor Haruki Murakami, que aborda a vida do ator e diretor de teatro Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) que, após uma tragédia, é convidado para dirigir uma peça em um festival de Hiroshima. Já na cidade, o protagonista conhece a sua motorista, a jovem Misaki (Tôko Miura), que, assim como o diretor, tem que aprender a lidar com o seu passado.
Drive My Car é focado, majoritariamente, em seus personagens. Porém, para além dos humanos em questão, o filme investe também nos “não-humanos”, importantíssimos a trama, que são símbolos de suas relações. O automóvel Saab 900 vermelho e a própria cidade de Hiroshima são algumas dessas figuras essenciais.
O carro simboliza a confissão entre as relações. De um início protocolar e distante do protagonista, Misaki vai ganhando dia após dia mais regalias dentro do veículo, significando a confiança do dono do carro para com a mesma. É bonito ver o cuidado do diretor de não desperdiçar nem uma linha de diálogo, especialmente os mais introspectivos dentro do Saab 900. É uma troca de confidencialidade entre os dois personagens, que vai evoluindo através do crescimento da confiança e abertura entre ambos.
O filme é um daqueles casos em que a metragem (são quase 3h de duração) faz jus ao que está sendo apresentado em tela, exigindo uma atenção especial a cada linha traçada entre Kafuku e Misaki. Um detalhe importante é quando nos pegamos com 40 minutos de filme e, só nesse ponto, aparecem os créditos iniciais, pois o filme já começa te mergulhando na vida e na intimidade do protagonista com sua esposa, que é essencial para o resto do longa. A relação dos dois é marcada por amor e confiança, mas também pelo medo de bater de frente com os conflitos entre ambos, e a parte sexual vai além da carne e se torna espiritual, onde Oto (Reika Kirishima) – sua esposa – entrega um pedaço de seu amor através de contos inacabados.
A cidade de Hiroshima é um símbolo bem evidente sobre o renascimento de Kafuku e Misaki, que são assombrados por seus passados e prendem seus sentimentos consigo mesmos de uma forma que seguir em frente é apenas um detalhe desinteressante em suas existências, a ponto de não conseguirem sair de suas zonas de conforto. E essa zona de conforto é simbolicamente explorada no contraste da cor vermelha do carro com toda a fotografia acinzentada da cidade. Ali, naquele ponto avermelhado, ambos se sentem confiantes em se abrir um para o outro, sem correr o risco daquela cor pálida os engolir.
Com o passar de Drive My Car é belíssimo ver como a relação entre ambos se desenvolve de forma orgânica, sem a necessidade de grandes eventos para forçar aquela fidelidade. Contudo, ao mesmo tempo, é triste acompanhar duas pessoas com sentimentos tão reprimidos, que só consegue dialogar entre si através de frases simbólicas, das quais cada um só consegue se entender devido ao sentimento culposo de cada um.
Misaki, mais nova, mesmo talvez tendo mais tragédia que Kafuku, que é mais velho, não altera o fato de que ambos sentem o peso de suas perdas e culpas da mesma forma, pois a dor de cada um é proporcional ao que cada um viveu, não existindo uma competição. É sobre como as relações são feitas de acordo com a dor e jamais através do alívio.
Além disso, é um filme que fala muito através do silêncio. Aqui, frases são completadas através de olhares, e isso só funciona porque temos tempo para entender detalhadamente cada sentimento, seja do ator e diretor de teatro ou da motorista, o que requer tempo e atenção do espectador.
Em Drive My Car, a montagem ajuda muito nesse quesito, pois é tudo muito natural, ritmado, com situações que prendem a nossa atenção, seja com uma história dentro da história que estamos acompanhando, ou simplesmente com dois personagens se conectando por fumarem um cigarro dentro do carro em movimento. A sincronia entre os personagens passa muito por essa edição caprichada, que jamais torna o longa enfadonho.
O longa de Hamaguchi é o típico filme que nos deixa arrasados, porém, não por conter grandes tragédias explícitas ou muitas mortes, mas por ser um filme que conecta seus personagens através de situações marcadas pela culpa e liga pessoas que não falam a mesma língua através da arte. É o cinema agindo da forma mais pura e sincera com o público, já que a relação entre realizadores e espectadores sempre se deu através de símbolos e interpretações.
Drive My Car é extraordinário por conseguir extrair o máximo de sentimento do público sem ser apelativo. É contemplativo e leva quem assiste a interpretá-lo de acordo com sua própria vivência. Ao fim, a sensação que fica é de uma certa tristeza ou melancolia ao percebermos, com o longa, o quanto as relações humanas são assombradas pela forma que lidamos com a nossa realidade, sempre fugindo dos confrontos que podem nos trazer um desconforto perpétuo. Ainda assim, é uma coisa extraordinária quando conhecemos alguém com quem podemos dividir a nossa alma.
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica
Título Original: Doraibu mai kâ
Ano: 2022
Direção: Ryûsuke Hamaguchi
Roteiro: Ryûsuke Hamaguchi, Takamasa Oe
Elenco: Hidetoshi Nishijima, Tôko Miura, Reika Kirishima, Park Yu-rim, Jin Dae-yeon, Sonia Yuan, Ahn Hwitae, Perry Dizon, Satoko Abe
Fotografia: Hidetoshi Shinomiya
Montagem: Azusa Yamazaki
Trilha Sonora: Eiko Ishibashi