No Ritmo do Coração | No Prime Video

O texto a seguir contém spoilers!

No Ritmo do Coração é a grande surpresa da temporada de premiações. O filme não apenas detém o recorde de venda mais cara do Festival de Sundance (para a Apple TV+ por 25 milhões de dólares), como também é o vencedor do Oscar 2022 de Melhor Filme, competindo ferozmente contra Ataque dos Cães. A produção teve uma forte campanha de lembrança da Apple, que investiu pesado em sua divulgação para permitir que o filme arrebatasse os votantes da Academia e ganhasse muita força na última volta para ultrapassar o adversário e subir ao pódio do Oscar.

O que a obra teria de tão especial para seguir quebrando tantas barreiras na indústria de Hollywood? A simplicidade. No Ritmo do Coração é um filme formatado para ser um crowdpleaser, aquela produção gostosinha construída para agradar ao público e tocar até mesmo aquele espectador ranzinza. Muitos argumentariam que o filme recorre demais ao seu lado melodramático e que sua fraqueza estaria na vontade de agradar de forma aberta, expansiva, sem as sutilezas de Jane Campion, as relações humanas introspectivas de Ryûsuke Hamaguchi ou até mesmo a qualidade narrativa cheia de sagacidade e energia da obra de Paul Thomas Anderson.

Pessoalmente, jamais acreditarei que é um pecado tentar construir um filme simples e emotivo. É na simplicidade que moram obras que vivem em nossos corações de cinéfilo e que não nos abandonam durante nossa breve estadia nesta Terra.

Também não podemos confundir dois termos muitos semelhantes: “simples” e “simplório”. Uma produção simples pode ser perfeitamente bem construída do ponto de vista de direção, montagem, roteiro, som e diversos outros elementos cinematográficos, seguindo uma proposta estética e narrativa bem definida e contendo um objetivo básico, mas que é bem cumprido ao “apagar das luzes”. Já o simplório pode ser um filme em que não existe cuidado algum, escrito e dirigido de modo raso e nem mesmo um objetivo básico como “divertir” é cumprido.

No Ritmo do Coração

No caso de No Ritmo do Coração pude perceber que a diretora e roteirista Sian Heder trabalha muito bem o simples em sua mise-en-scène com um objetivo claro: demonstrar aproximações e afastamentos, seja nos movimentos dos personagens dentro do quadro, seja em suas distâncias para o centro da imagem. Essa escolha pressupõe que os enquadramentos (em sua maioria) são em planos de conjunto que capturam a família Rossi junta em cena. Muito frequentemente a diretora capta uma distância evidente entre os atores, de forma a evidenciar as discordâncias morais e emocionais deles com um determinado tema ou situação.

Isso estabelece uma dinâmica onde sempre que um personagem quer se aproximar emocionalmente de outro ou quebrar uma barreira social, ele se aproxima fisicamente daquela pessoa, preenchendo o quadro com ambos os personagens, agora juntos, agindo com o coração, seja em diálogos ou em ações. Um exemplo muito evidente disso é a cena em que o professor Bernardo Villalobos (Eugenio Derbez) pergunta para seus alunos do coral, Ruby (Emilia Jones) e Miles (Ferdia Walsh-Peelo), se eles ensaiaram a música do dueto que ele havia planejado. O diálogo inicia com a menina e o menino separados por um espaço no meio do quadro — demonstrando o que eu havia dito sobre o espaçamento e a distância emocional entre eles.

Há um contra plano que capta o professor Bernardo bem no meio deles tocando o seu piano. Ele argumenta bastante com os jovens por não terem ensaiado, se levanta e fica bem no meio deles. Aqui, a diretora quer mostrar como a figura do professor é fundamental para a aproximação daqueles dois alunos com suas lições morais.

Para isso, esse posicionamento entre os personagens é perfeito porque ele vai (metaforicamente) unir as duas pontas para aproximá-las. Isso efetivamente acontece na cena, mesmo que forma tímida. Enquanto ela progride, os dois de fato chegam mais perto um do outro, “quebrando o gelo” emocional entre eles. O próprio Villalobos, após o garoto sair da sala, permanece distante de Ruby até que ele se desloca para próximo de sua aluna.

No Ritmo do Coração

O professor pergunta o que a música causa na personagem, que hesita, até finalmente se concentrar e responder com linguagem de sinais por conta de sua família de deficientes auditivos. O seu coração, naquele breve instante, estava com sua família. É ali que a música também reside, mostrando que para a personagem se livrar de seus demônios emocionais, é preciso aproximar as duas pontas de seu próprio coração. Essa é, para mim, a cena mais bonita de todo o filme. É singela, simples, mas comunica muito com pouco.

A cineasta possui a sensibilidade de entender em que momentos deve construir sequências musicais divertidas e em que momentos tem de deixar o diálogo se desenvolver sem trilha musical. Isso parece um ponto bem óbvio, afinal de contas, No Ritmo do Coração é um filme que trata do amor pela música de uma filha de pais com deficiência auditiva. Entretanto, vivemos em uma era onde o óbvio precisa ser dito, senão as pessoas ignoram. Sendo assim, as cenas dramáticas de diálogo na obra funcionam muito melhor sem forçar a barra com a trilha musical de fundo e tornando tudo muito mais autêntico.

Essa consciência se estende para uma cena onde a realizadora corta o som completamente de uma música sendo cantada por Ruby em uma apresentação do colégio, justamente porque seus pais estavam no auditório. Isso nos coloca momentaneamente na pele deles e passamos a entender de forma mais impactante a situação demonstrada de pais que não conseguem presenciar o talento de sua filha por conta de impedimentos físicos. Em nenhum momento essa intervenção de linguagem soa forçada ou deslocada, principalmente porque Heder já estava fazendo algo semelhante em outras cenas de diálogo, porém, de maneira mais sutil.

No Ritmo do Coração

A própria escolha das músicas é perfeita para as mais diferentes situações na produção. “You’re All I Need to Get By” fala sobre o sacrifício e a dedicação para estar junto da pessoa amada e ilustra os esforços da protagonista em ajudar sua família, mesmo com a vontade de seguir os seus sonhos. “Both Sides Now“, de Joni Mitchell, mostra como Ruby (no fim da projeção) aprendeu a lidar com seus sentimentos conflitantes entre objetivo de vida e família, já que agora a personagem “olha para o amor por dois lados”.

Do ponto de vista estético, Heder não tenta fugir muito da faceta mais leve de sua produção. A fotografia se apresenta sobre uma forma mais naturalista que me lembra os filmes de Richard Linklater. Da mesma maneira, o design de produção não soa muito destacado, sendo simples o suficiente para ser parte integrante do mundo diegético, mas sem a intenção de ser chamativo ou distrair. Muito da alma do longa vem de seu roteiro, da sagacidade da direção e do elenco afiado e talentoso que possui.

Analisando o roteiro de No Ritmo do Coração, todas as cenas, ações e diálogos funcionam em prol do desenvolvimento dos arcos dos personagens. Sian Heder não foge dos confrontos emocionais entre Ruby, seus pais Frank (Troy Kotsur) e Jackie (Marlee Matlin), além do irmão Leo (Daniel Durant). Existem 4 pontos cruciais para trabalhar o drama da protagonista: a relação entre ela e o trabalho de Frank e Leo como pescadores (os negócios da família em geral); seus estudos para entrar numa faculdade de música com o professor Villalobos; o bullying que a personagem sofre por conta da deficiência da família, o que gera uma obrigação moral de protegê-los, algo que sufoca a garota; e o interesse amoroso de Ruby por Miles, o que acaba colocando-a em várias situações de confronto.

No Ritmo do Coração

Esses 4 pontos, além de dramaticamente importantes, revelam uma importância temática. É por meio deles que o roteiro trabalha questões sobre o amadurecimento, independência, corte do cordão umbilical com a família e sobre acreditar em si mesmo, por mais que o universo diga que você não é capaz. Outro tema que acaba sendo tocado (esse sem o mesmo aprofundamento dos demais) é o do poder destrutivo do governo e do capitalismo que impede pessoas honestas de trabalhar ou retira delas ganhos para suas próprias sobrevivências.

Além de todos esses pontos, um dos maiores acertos do longa é sua representatividade. Hollywood, em tempos passados, teria escalado atores não-surdos para os papéis de pessoas com surdez, o que ainda acontece muito. Contudo, os novos tempos trazem produções como See da Apple TV+, em que a grande maioria do elenco são pessoas cegas, servindo não somente aos propósitos narrativos, mas também dando oportunidade a atores e atrizes que merecem estar em posições importantes na indústria.

No Ritmo do Coração tem na família central 3 grandes atores da comunidade surda: Marlee Maitlin (a única atriz surda a vencer o Oscar de Melhor Atriz), Daniel Durant, um jovem e talentoso ator; e Troy Kotsur, o pai de família mais engraçado do cinema recente. Maitlin, como a mãe dos Rossi, vê em sua filha uma barreira por conta da falta de audição e quer sempre ela junta de sua família. Sua capacidade de transitar entre comédia e drama é excepcional, demonstrando uma versatilidade que abre um maior leque de emoções para o filme.

O mesmo pode ser dito de Kotsur, que interpreta um personagem muito carismático, sem “papas na língua”, com brincadeiras até inapropriadas em algumas situações, mas que demonstra um amor gigante pela filha e orgulho por seu trabalho. O ator ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante e é uma vitória muito merecida — apesar do crítico que vos escreve gostar mais do Kodi Smith-McPhee de Ataque dos Cães, mas sem tirar os méritos de Kotsur.

No Ritmo do Coração

Já o jovem Daniel Durant tem um papel difícil nas mãos porque o mesmo precisa demonstrar uma certa raiva contida e angústia de seu personagem por conta da irmã ser o centro das atenções na família. Papel difícil por conta das camadas menos expansivas, mas muito bem interpretado pelo rapaz. Já Emilia Jones (a protagonista da história) tem uma gama muito complexa de sentimentos a apresentar e uma maneira particularmente tímida de se portar, o que pede a ela uma expansividade maior enquanto a história progride, uma espécie de liberação de todos os seus sentimentos para que a personagem efetivamente se conecte à música e vença seus demônios.

Todo o elenco, como foi possível observar, cumpre com perfeição seus papéis, destacando-se também Eugenio Derbez como o professor Villalobos, um homem que também sofreu com o preconceito (e sofre até aquele momento, havendo elementos na obra que corroboram isso) e que se porta de forma dura e firme, invocando uma autoridade necessária para que ninguém pise nele, mas que tem um grande coração e que adora ajudar as pessoas que merecem.

Prosseguindo aos pontos negativos, é possível dizer que alguns dos ferrenhos críticos de No Ritmo do Coração estão certos em relação ao excesso de melodrama. O longa, principalmente na parte final, faz algumas escolhas narrativas bem questionáveis, como mostrar flashforwards (acontecimentos futuros da trama) bem no meio de um clímax que tinha tudo para ser arrebatador. Isso faz com que toda a boa construção da cena caia por terra, tudo em prol de elevar o melodrama e arrancar uma lágrima do espectador. Todo o terceiro ato, inclusive, é muito sofrível, com grandes e exagerados abraços, despedidas e um alongamento desnecessário de toda a cena.

No Ritmo do Coração

Se fosse mais econômica, a produção certamente arrebataria a audiência com um soco no queixo e nos deixaria em suspensão, sentindo a vontade de ver mais daquela história que finalizou em grande estilo. Entretanto, a diretora-roteirista “mata” o potencial completo da cena ao preferir algo mais clichê.

O fim do segundo ato também traz algo que não me agrada num roteiro audiovisual que é você forçar todas as situações a darem certo de uma maneira artificial. Todo o momento em que Ruby chega atrasada na cidade grande, existe uma tolerância da faculdade de música que é incompreensível.

O mesmo acontece quando os pais da menina resolvem entrar na sala (algo estritamente proibido) e simplesmente ficam lá pra assistir a filha sem nenhum impedimento. Essas ações forçam muito a suspensão da descrença necessária para se apreciar uma obra de ficção, o que para mim soa como uma “mão forte” do roteiro, levando a história para lugares que não se desenham de forma natural, servindo apenas para dilatar o fator emocional da cena em questão. Infelizmente, esse é o maior desequilíbrio do filme que poderia ter sido facilmente evitado.

No Ritmo do Coração, mesmo que tenha suas falhas, se enquadra naquela categoria do simples, mas bem realizado. É importante que se tenha a noção de que fazer algo simples e efetivo é muito difícil, por mais que não pareça, diferentemente do simplório. Por tudo o que foi exposto nesse texto, é mais tranquilo entender como Sian Heder fez sua magia de hipnose no público e na Academia.

Acredito que o filme seja tão bom quanto Ataque dos Cães ou Drive My Car? Não. A obra virará um clássico do cinema e será lembrada por anos depois de vencer a categoria de Melhor Filme? Também não. Porém, preciso ser honesto com os leitores e dizer-lhes a verdade: No Ritmo do Coração é um bom filme (independente de ser ou não “Sessão da Tarde”), poderoso em sua simplicidade e também na sua representatividade.

Para assistir o filme no Prime Video, clique aqui.

Nota: ★★★★✰

 

Ficha Técnica

Título Original: CODA

Ano: 2021

Direção: Sian Heder

Roteiro: Sian Heder

Elenco: Emilia Jones, Troy Kotsur, Marlee Maitlin, Daniel Durant, Ferdia Walsh-Peelo, Eugenio Darbez

Fotografia: Paula Huidoboro

Montagem: Geraud Brisson

Trilha Musical: Marius de Vries

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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