O Homem do Norte | Nos Cinemas

Robert Eggers criou uma grande reputação para si com seus dois primeiros filmes. O primeiro, A Bruxa, é uma fábula assustadora sobre a libertação feminina das amarras de castidade do mundo cristão masculino. O segundo, O Farol, representa um estudo sobre o comportamento humano em condições de isolamento extremo. Ambos os projetos trabalham vários simbolismos que nos fazem pensar a cada segundo, em apoio ao grande núcleo temático da trama.

Além disso, Eggers produz imagens de personagens que fogem completamente do aceitável pela sociedade, com uma crueza que assusta tanto que nos faz negar que dentro de cada um de nós temos muito daquilo. Essa sagacidade de texto unido a elementos imagéticos e sonoros brutais é o que faz a filmografia do diretor marcante, por mais curta que ela seja. Espera-se que o cineasta mantenha esse nível em todos os seus projetos, mas em O Homem do Norte ele, infelizmente, não consegue.

O filme carece, principalmente, dessa inteligência em construir mistério, em nos fazer descobrir situações que nem sonhávamos antes de entrar na sala de cinema. Tudo na obra é claro demais, o que me parece um desvio da poética singular do realizador. Isso não significa, apesar disso, que seja um filme necessariamente genérico, mas muito diluído em ideias, muitas delas talhadas pela Focus Features na ilha de edição.

O que me faz pensar nisso, além das inúmeras entrevistas que Eggers já deu comentando o quão difícil foi ter controle criativo no corte, é o andamento do primeiro ato da narrativa, muito mais rápido do que o de costume. Alguns atores aqui, por mais que tenham papéis importantes na trama, possuem poucas cenas para trabalhar. Isso gera um desequilíbrio na própria forma como entendemos a relação de personagens e a motivação principal do protagonista, o príncipe Amleth, interpretado por Alexander Skarsgard.

Já tendo apresentado apressadamente a maioria dos personagens, o segundo ato segue apresentando e construindo novos personagens e situações, o que gera outro desequilíbrio. Amleth não apenas agora tem de lidar com a vingança que ele tanto anseia, como também com uma mudança de comportamento e visão de mundo que exige uma certa calma. Da forma como foi montado o segundo ato, é necessário colocar em moção tantos elementos, principalmente de relação de personagens, que o ritmo soa por vezes truncado, sem andar o suficiente em termos dramáticos e sem desenvolver de forma competente o suficiente o eixo temático.

Temos aqui personagens que parecem ser apenas funcionais, como a de Björk. Celebrada por voltar a fazer cinema após os diversos abusos do diretor Lars Von Trier, a cantora e atriz interpreta muito bem Seeress, uma enigmática mulher, mas que rapidamente cumpre seu papel na trama e se esvai para não retornar novamente. Sinto o mesmo com a personagem de Anya Taylor-Joy, Olga, que apesar de ter mais cenas, não desenvolve de maneira natural e forte sua relação com Amleth, o protagonista. É bastante artificial o que é construído entre os dois e isso tem um peso em dobro, porque ela é fundamental para a construção do arco do príncipe.

Este, por sua vez, é o personagem com mais destaque, a força motriz do filme. Apesar de não ter um arco perfeitamente bem escrito, Amleth é a nossa conexão com o estudo de personagem habitual de Eggers. Alexander Skarsgard brilha em sua interpretação, trazendo uma brutalidade e uma força enorme pro papel, mas também sabendo virar a chave e demonstrar solidão, tristeza e confusão no olhar.

Amleth pinta em seu quadro branco uma vingança e vive somente por isso, destilando ódio e buscando uma honra tirada de sua família a qualquer custo. Até que ponto destruir é mais relevante do que construir? Por que não recomeçar e buscar sua própria história? Simplesmente porque o homem aprendeu que a violência vem sempre em primeiro lugar e nela se banha de sangue e poder. Para que existe a diplomacia se é possível simplesmente jogar uma bomba atômica e esbanjar um símbolo de força? Essa questão é relevante de refletir, afinal de contas, há pessoas morrendo em guerras nesse exato minuto.

Trago também um último destaque para Ethan Hawke e Nicole Kidman, respectivamente o rei e a rainha da região nórdica gélida. A última, inclusive, brilha em um monólogo de arrepiar e que vira do avesso a percepção do espectador sobre um personagem em específico.

Conectados a truncada montagem e ao desperdício de personagens coadjuvantes, encontra-se também problemas básicos de construção de situações dentro do roteiro. A forma como o príncipe descobre onde seu antagonista se encontra e como chegar até ele é tão forçada que parece que a cena foi escrita por um roteirista inexperiente. O mesmo acontece no meio do segundo ato, quando ocorre uma dilatação abrupta de uma ação primordial para a trama. A cena se desenrola com um monólogo horrível do protagonista entoando para o vento (literalmente) o que pretende fazer, em um exemplo de superexposição que faria inveja a Christopher Nolan.

Ademais, há uma derrapagem na construção dos simbolismos da trama. Todos são bem óbvios, com um ou outro se destacando dos demais em termos de importância para a narrativa. Todo o contexto em que se passa o clímax, por exemplo, é interessante e faz sentido com a construção de temas como destino, martelado durante toda a projeção. Outros elementos simbólicos não tem uma utilização interessante, pois é tudo muito simplista, como a grande maioria das sequências onde Eggers pesa a mão na mitologia nórdica.

No meio disso tudo, o realizador ainda precisa colocar sua personalidade habitual pra jogo e encontra alguns escassos espaços para isso. Existem cenas em que o diretor evoca emoções fortes, seja pela loucura do que está sendo mostrado, seja pela forma competente com que a montagem constrói o sentido da cena, ou ainda, seja pela grande habilidade de mise-en-scène do realizador.

Em um desses momentos, existe um certo ritual que lembra muito A Bruxa na forma como é executado. Uma atmosfera cheia de sombras acentuada pela fotografia e uma câmera inquieta se movimentando pelo espaço, além de cortes que alcançam as bizarras expressões faciais dos atores em primeiro plano, dão um ar de cinema de horror muito bem vindo a experiência, junto da exploração de um conceito curioso que será importante em cenas futuras.

Há também uma cena de ação na obra, a mais impactante em termos estilísticos, onde Eggers em um grande plano sequência capta a fúria e a sede de sangue de seu protagonista. Essa é a cena que mais me remete a O Farol, não em termos de construção, mas sim na relação de dominância da loucura sob seus personagens, que foge completamente da civilidade e coloca o ser humano em sua forma mais primitiva e natural. Ela inclusive termina deixando o som dar a letra da violência, causando o forte impacto da sugestão.

Outros destaques são a fotografia de Jarin Blaschke, cheia de contrastes entre tons gélidos e quentes, além de sombras, que explicitam a agressividade e a melancolia de seu protagonista; a direção de arte meticulosa, buscando se aproximar o máximo possível da realidade daquele local e período; mixagem e edição de som que nos inserem dentro da experiência e possuem papeis cruciais na linguagem do diretor em diversas cenas (uma delas explicada anteriormente); e a trilha musical de Robin Carolan e Sebastian Gainsborough, com canções que ajudam a construir os contornos épicos das cenas, mas sem fugir da ancestralidade da narrativa.

Portanto, O Homem do Norte é sim um filme competente. Porém, a obra apresenta problemas narrativos impossíveis de serem ignorados e tenho uma forte suspeita que Eggers perdeu muito de seu controle criativo sobre uma propriedade que custou 90 milhões de dólares. Infelizmente, a crítica tem de ser feita em cima do resultado final e não do que “ele poderia ser”, mas a decepção é sempre maior quando vejo um projeto com grande potencial e que acaba não confirmando-o. Sigo, porém, fã de Robert Eggers e com a convicção de que ele pode vir a entregar mais grandes obras no futuro. Pena que essa não foi uma delas.

Nota: ★★★✰✰

 

Ficha Técnica

Título Original: The Northman

Ano: 2022

Direção: Robert Eggers

Roteiro: Robert Eggers, Sjón

Elenco: Alexander Skarsgard, Nicole Kidman, Claes Bang, Ethan Hawke, Anya Taylor-Joy, Willem Defoe, Björk

Fotografia: Jarin Blaschke

Montagem: Louise Ford

Trilha Musical: Robin Carolan, Sebastian Gainsborough

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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