Fotogramas | A solidão felliniana de Casanova
Dentro da filmografia de Federico Fellini (A Doce Vida e 8½), seu filme sobre uma das mais famosas figuras da Europa no século XVIII, Giacomo Casanova – mais conhecido pelos seus affairs e tendo seu nome como sinônimo para “mulherengo” –, é um dos menos lembradas. No entanto, apesar de ser considerada uma obra “menor”, visualmente o material permitiu ao diretor a exploração do barroco de uma forma muito própria, empregando muito bem sua já conhecida visão onírica.
Lançado em 1976 e protagonizado por Donald Sutherland (franquia Jogos Vorazes e Orgulho & Preconceito), Casanova de Fellini procura abordar a jornada de um homem infeliz em busca de reconhecimento pelos seus dotes intelectuais, que são constantemente ignorados devido a sua fama de libertino e pelo seu histórico sexual.
A antipatia de Fellini pelo personagem está documentada em algumas entrevistas feitas no período, onde o diretor afirmava que seu objetivo era demonstrar o vazio presente na vida de Casanova, o que se refletia na brutalidade com que a figura histórica era retratada na primeira versão do roteiro do filme. Porém, em meio às filmagens, o diretor passou a sentir certa pena da incapacidade de Casanova de amar, o que o levou a modificar alguns aspectos da narrativa ao trazer mais compaixão e empatia pelo protagonista.
Uma das melhores cenas (ocorrendo próxima a marca de duas horas do longa) que trabalham a questão da solidão, incapacidade de amar e a busca por reconhecimento de terceiros do protagonista, é a da ópera de Dresden, onde Casanova tem um estranho encontro com a sua mãe.
No início, temos a apresentação do grupo teatral encenando uma ópera para a elite da cidade assim como para a realeza de Dresden. Entre o público se encontra Casanova, vestindo uma roupa marrom e de peruca de tom castanho claro contrastando com o restante dos presentes, que usam perucas dos mais variados tamanhos e cores, como azul, laranja, preto, loiro, além de figurinos luxuosos e imponentes.
Chegado o fim da apresentação, o público aplaude a companhia teatral, para em seguida fazer uma reverência à família real que se encontrava em um balcão do lado oposto ao palco da ópera. Com a saída da realeza, os presentes começam a se retirar, restando apenas Casanova.
Nesse frame, Fellini coloca Casanova na lateral do quadro, com o fundo contendo os balcões da ópera completamente vazios e a iluminação reduzida, para demonstrar o isolamento e vazio do protagonista naquele mundo. Em meio ao público, Casanova mantém uma feição firme, de cabeça erguida, orgulhoso; sozinho, por alguns segundos, ele abaixa o olhar e cabeça ao se perceber sozinho e ignorado por todos, para em seguida rapidamente retomar a pose e passar a observar o espaço com desdém e ar de superioridade.
Os candelabros que iluminam o teatro começam a descer para ter suas velas apagadas pelos funcionários do local, que ignoram completamente a presença de Casanova ali. Eles finalizam o trabalho e se retiram, enquanto o protagonista disfarça ao observar um monumento, até que uma conhecida voz feminina chama seu nome…
Antes aparentemente vazios, os balcões da ópera escondiam um fantasma esquecido de seu passado: sua mãe. Em meio ao diálogo dos dois, ela o questiona sobre o que ele está fazendo em Dresden, que a responde que está lá a negócios, para um projeto no qual o ministro está interessado. Sua mãe não acredita, já conhecendo a natureza do filho de se gabar contando as mesmas histórias de sempre, e o cobra por nunca ter enviado um centavo para ela. Casanova se justifica dizendo que não sabia onde ela morava e que sempre quis escrever para ela e visitá-la, mas logo em seguida muda de assunto perguntando sobre o segundo marido da mãe, que o responde dizendo que ele está morto.
Casanova pergunta se a mãe vive na cidade, que responde que não, informando-o de que está morando no interior. Em seguida, ele afirma que poderia visitá-la, passando alguns dias lá tanto quanto o seu negócio permitisse, como se na ausência do padrasto ele poderia tomar o espaço dele ou quem sabe conseguir acessar a elite local por meio da sua mãe. Ela simplesmente ri e o ridiculariza, demonstrando já saber dos objetivos do filho.
O fato de sua mãe estar numa posição superior com um refletor direcionado a ela e de Casanova estar embaixo em meio às sombras, demonstra a relação desigual e a distância que existe entre os dois. O diálogo reafirma que não há amor ou saudade por parte do protagonista pela mãe, apenas seus interesses. No entanto, ele não a engana, que não se deixa convencer pelas palavras do filho. No fim, Casanova não tem absolutamente nenhum carinho dela, apenas desdém.
Em uma última tentativa de conseguir algo da mãe, Casanova se oferece para carregá-la, já que a mesma está aguardando a chegada de sua carruagem e não consegue andar devido à fraqueza das pernas. Antes de entrar no balcão onde ela se encontra, para por um momento como se estivesse em conflito sobre a humilhação de agir como um serviçal e carregá-la nas costas. Antes de abrir a porta, Casanova respira, abre um sorriso fingido e entra no personagem, com uma voz calma e um carinho simulado para com sua mãe.
Durante o percurso, Casanova tenta convencer sua mãe de suas conquistas e habilidades, afirmando que ela está errada em achá-lo um devasso, pois ele é conhecido por toda a Europa como uma pessoa letrada, e por ser um bem sucedido homem de negócios, tendo acumulado uma fortuna considerável. Respondendo-o em alemão de uma forma ríspida e impaciente, Casanova diz que não a compreende, e ela o responde perguntando “Você não entende ou não quer entender?“.
Próximos à saída da ópera, ele sugere que poderia adquirir uma propriedade perto da dela e dividir com ela a fortuna que conquistou, pretendendo parar de vagar pelo mundo pois não é mais jovem como antes. Por fim, pergunta se ela tem notícias dos parentes em Veneza, afirmando que um dia pretende voltar à cidade.
A carruagem chega, os serviçais retiram a mãe de Casanova de suas costas em silêncio, a colocam dentro do veículo e fecham a porta, ignorando a presença dele. Ela o fita uma última vez com um sorriso irônico no rosto, que se encontra com o semblante de humilhação dele, já que todo seu esforço não serviu para absolutamente nada.
Ela parte deixando Casanova para trás, que abaixa a cabeça ao se perceber, mais uma vez, sozinho e ignorado, e diz: “Eu esqueci de perguntar o endereço dela“. A cena termina com o protagonista andando e ajeitando sua capa de modo afetado, retomando em seguida seu ar orgulhoso e de suposta superioridade.
Todo esse diálogo com a mãe apenas confirma a incapacidade de Casanova de sentir afeição ou amor por qualquer pessoa, tudo gira em torno de seus interesses e sua pose. Nem sua mãe é capaz de lhe despertar o mais genuíno sentimento de carinho, tudo o que lhe interessa é o que ele pode conseguir com uma possível reaproximação. E, independente dela zombar dele e não acreditar em suas histórias, Casanova insiste até o fim, não se deixando vencer.
O personagem rompe vagamente com seu orgulho por pequenos segundos em momentos que se percebe solitário e sem ninguém para lhe dar atenção, ficando praticamente invisível aos olhos daqueles que estão à sua volta. Para alguém que busca reconhecimento pela sua intelectualidade, situações assim são humilhantes e brutais.
Casanova termina a cena sozinho, isolado, desprezado, humilhado e infeliz, porém, com as únicas coisas que lhe restam: seu orgulho ferido e ego.