Miss in Scene | Cisne Negro
Por trás de quase tudo que é belo se escondem segredos nem tão belos assim. São ações, momentos, meios de se chegar à beleza e à perfeição que, vistos no meio do processo, poderiam causar (e causam) reações de repugnância. Isso está em tudo na vida, até mesmo no início dela, com o próprio momento do parto — um misto de dor, fluídos e gritos que culminam nas boas vindas a um pequeno ser humano; e então, todo o resto é deixado de lado. O mundo do ballet não é diferente, e não só em relação à dança em si, com pés calejados escondidos dentro de sapatilhas e os litros de suor derramados nas horas e horas de prática; trata-se um meio profissional extremamente competitivo, onde o apreço pela perfeição toma conta da psique de muitos bailarinos e costuma estar a um passo da obsessão. Cisne Negro é um convite para desbravar esse universo tão bonito, mas tão cheio de segredos perversos. Porém, mais que isso, também é um estudo da relação de uma mulher consigo, com sua feminilidade e capacidade, e um reflexo de uma sociedade que valoriza padrões e ameaça descartar o que julga fora deles.
Embora a sociedade de hoje veja o ballet como uma arte muito ligada ao feminino —provavelmente por sua aparente delicadeza —, nos seus primórdios, a história era outra. Surgido na Itália, ainda no século XV, o ballet só cresceu enquanto expressão artística muitas décadas mais tarde, na corte do rei francês Luís XIV, como uma dança quase que exclusiva aos homens da nobreza – o próprio “Rei Sol” participou de diversas produções. Foi o compositor russo Piotr Tchaikovsky que, há quase 150 anos, presenteou o mundo com Lago dos Cisnes, um dos ballets de repertório mais importantes de todos os tempos, frequentemente reencenado pelas maiores companhias de dança do mundo. É uma dessas remontagens que serve de pano de fundo para o filme de Darren Aronofsky.
Ainda no início de Cisne Negro, quando Nina (Natalie Portman) se encontra no vestiário com outras solistas, chama a atenção uma conversa sobre a então primeira bailarina da companhia, Beth (Winona Ryder). As moças afirmam que Beth está velha, em um tom quase acusatório e que transborda veneno, dando forma a um discurso que procura justificar o “descarte” de uma bailarina que tem por volta de 35 anos de idade. Assim como no mundo da moda, por exemplo, ou qualquer outro universo onde se utiliza o corpo como ferramenta de um trabalho cujo objetivo é a beleza, a dificuldade de lidar com o envelhecimento é real para muitas mulheres, e vai além dos palcos e cochias. No que se refere à dança: com o passar dos anos, o ballet se desenvolveu tanto em seu nível técnico que alguns dos movimentos praticados hoje seriam impensáveis antigamente. Os bailarinos da atualidade, além de artistas, têm resistência e porte de atletas. Essa questão, aliada à valorização social da juventude (sobretudo a da aparência feminina), explica a forma como as bailarinas vistas no filme lidam mal com o processo natural da idade.
Contudo, tanto as bailarinas quanto o espectador sabem que o motivo da aposentadoria compulsória de Beth não é a sua idade. Não vamos nos aprofundar aqui na questão do assédio, mas Cisne Negro coloca de forma bem óbvia como as relações de poder dão a alguns homens a sensação de ter direito e espaço para avanços inapropriados. O talentoso coreógrafo Thomas Leroy (Vincent Cassel) parece ver suas bailarinas como bonecas que devem satisfazer todos os seus caprichos e com quem ele pode fazer o que bem entende — inclusive, descartar e substituir sem nenhuma razão aparente ou uma justificativa.
A conduta machista que permeia as ações e até os gestos de Thomas tem outro lado da moeda no comportamento de Erica Sayers (Barbara Hershey), mãe de Nina: se o coreógrafo objetifica a bailarina, sua mãe também a trata como uma “boneca de porcelana”. A dualidade do mentor que a sexualiza versus a mãe que a infantiliza só torna mais árdua para Nina a tarefa de ser quem ela realmente é. Constantemente chamada de “doce menina” pela mãe e sob altos níveis de estresse e pressão, Nina é tomada por impulsos de rebeldia tanto em casa, quanto na companhia de dança; uma busca por ser dona de si mesma que apenas reforça sua ânsia pelo perfeccionismo.
Aliás, perfeccionismo é um traço muito comum em artistas, sobretudo os da dança. Ele é encarado como o único meio de atingir o apogeu da beleza ou mesmo como um sinônimo dela. O contraponto da busca de Nina está no espírito livre de Lily (Mila Kunis), de tal maneira que se torna impossível não questionar: por que há a tendência em enxergar a verdadeira beleza na perfeição quando talvez ela devesse ser vista na liberdade de simplesmente “ser”? Na realidade, a busca por uma perfeição, quase sempre inalcançável, nos adoece enquanto pessoas e, consequentemente, enquanto sociedade.
Lago dos Cisnes conta a história da princesa Odette, sobre quem o mago Rothbart lança um encanto que a transforma num belo cisne branco. Tal feitiço só pode ser quebrado por um amor. Porém, o príncipe é enganado por Odile, filha do mago, levando o rapaz a acreditar que ela seja Odette. No filme, ainda que fique claro que Thomas representa Rothbart na vida da própria Nina, o ballet não é o feitiço: mas, o grande amor da bailarina. Nina está enfeitiçada mesmo é pela perfeição; e se divide entre o Cisne Branco e o Cisne Negro, quando oscila, dolorosamente, entre sua obstinação e a obsessão.
Ficha técnica
Cisne Negro (Black Swan)
Ano: 2010
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Andres Heinz, Mark Heyman e John J. McLaughlin
Elenco: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Winona Ryder
Trilha: Clint Mansell
Fotografia: Matthew Libatique
Excelente análise! Realmente esse primoroso estudo psicológico de Aronofsky oferece um rico material para explorar e você o fez muito bem!