Passaporte | Jessica Forever
Há filmes que possuem uma história meticulosamente articulada com uma trama cheia de detalhes, mesmo que use de recursos como idas e vindas no tempo para expôr seus argumentos. Jessica Forever não é esse tipo de filme. Sua história nos oferece o mínimo para instigar nossa curiosidade. Rico em sua plasticidade, com aspectos técnicos que transformam um plano em uma obra pictórica, o filme parece por vezes sem sentido.
Caroline Poggi e Jonathan Vinel realizaram diversos curtas incluindo Tant qu’il nous reste des fusils à pompe (vencedor do Urso de Ouro de Melhor Curta no Festival de Berlim de 2014), Notre Héritage (exibido na Berlinale de 2016) e After School Knife Fight (exibido na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2017). Jessica Forever é o primeiro longa da dupla.¹
Jessica (Aomi Muyock) é uma mulher na casa dos 25 anos que acolhe órfãos. Não são crianças órfãs como podemos ser automaticamente levados a pensar, e sim jovens na casa dos 18 aos 20 anos. Todos eles, incluindo a própria Jessica, são perseguidos por um grupo intitulado Forças Especiais, que ao encontrá-los não exitaria em executá-los. Esses jovens, tomados pelo ódio, cometeram crimes no passado que os condenaram a uma vida de fuga como única maneira de evitar suas mortes. E não queira saber mais nada pois o filme não dará ao espectador muitas mais informações além dessas.
O filme francês carece que tenhamos boa vontade e desprendimento para aproveitar tudo o que ele pode nos oferecer. Em vez de apenas focarmos na falta de informações sobre quem são aquelas pessoas, devemos “comprar” o absurdo da trama distópica e nos deliciarmos com as cenas, ora oníricas, ora impactantes, recheadas de violência estilizada e gratuita, com poucos diálogos e centradas no cotidiano do grupo paramilitar.
A protagonista é uma misto de entidade espiritual-cósmica, um Rei Arthur do gênero feminino, uma deusa mãe que acolhe pessoas desprovidas de amor em busca de aceitação em um mundo que desistiu deles. Não ache que o enredo busca redimir aquelas pessoas de seus atos, até porque não se sabe exatamente quais foram esses atos. Com exceção de um personagem que tem seu passado destrinchado, os demais membros da equipe são incógnitas.
Assim, nos deparamos com uma narrativa que tenta transgredir com os julgamentos sobre quem merece ou não amor e qual tipo de amor deve ou não ser aceito. E ao propor mostrar aos poucos a violência existente em cada um daqueles corpos em cena – que de tão ordenadas nos enquadramentos parecem quadros –, a dupla de diretores deixa claro que esse é apenas o combustível catalisador da trama. Tudo gira em torno da violência sofrida e provocada. Um círculo vicioso de sentimentos transbordando por não terem espaço para serem guardados.
E ainda que em meio a essa explosão constante de violências, auto flagelos e incertezas, há sempre alguma perspectiva de união e amor entre aqueles jovens. Eles se apaixonam, respeitam a figura materna que Jéssica é para eles – a relação entre eles e a protagonista é completamente assexuada –, se apegam a bens materiais e até desfrutam do prazer proporcionado pelo paladar. Em todas as sequências que eles se alimentam, por mais que as refeições pareçam comida de férias para crianças, duas observações devem ser feitas: o desjejum é feito em conjunto, mantendo assim o afeto, a troca e a relação de comunidade entre eles; e a presença do prazer no ato de se alimentar.
Todos os sentidos são explorados. Parece redundante focar na violência, mas é impossível não entender que a maneira como aquelas pessoas retribuem olhares, a troca que existe entre falar e ouvir um ao outro, e o toque por meio do abraço, são meios de questionar o quanto do que entendemos por violência não pode ser limitado apenas aos atos hediondos que resultam em óbitos e marcas físicas. O uso do onírico e da fantasia facilitam a transposição dessa barreira ao encararmos que os órfãos, ainda que monstruosos, desenvolvem entre si uma relação de entendimento mútuo.
Jessica Forever não trata de uma ode à bestialidade e sim uma proposta de confusão, uma breve e rasa crítica social em uma manifestação estética das mais belas.
Mergulhem no filme e tirem suas próprias conclusões.
¹ Informações extraídas do site Zeta Filmes. Este link contém uma entrevista feita com os diretores.
Nota: ★★★✰✰
Ficha Técnica
Título Original: Jessica Forever
Direção: Caroline Poggi & Jonathan Vinel
Roteiro: Caroline Poggi, Jonathan Vinel
Elenco: Aomi Muyock, Lukas Ionesco, Maya Coline, Paul Hamy
Fotografia: Marine Atlan
Montagem: Vincent Tricon
Som: Lucas Doméjean
Trilha Sonora: Ulysse Klotz
Produção: Emmanuel Chaumet, Mathilde Delaunay, Olivier Père