Na Netflix | Estou pensando em acabar com tudo

 

Charlie Kaufman é o tipo de roteirista e diretor que consegue trabalhar as mais profundas questões do homem de maneira única. Em suas parcerias com Spike Jonze e Michel Gondry, Kaufman transitou entre gêneros como a ficção científica e a fantasia, sempre se utilizando de intertextualidades com o mundo da literatura e da poesia, e também de um elemento que vem ficando cada vez mais forte desde Adaptação (o seu melhor roteiro): a metalinguagem, que são as conexões feitas com o mundo extra fílmico, ou seja, quando os personagens reconhecem a presença do nosso mundo ou situações são criadas para fazer um paralelo perfeito com a realidade.

Seu trabalho solo também tem ficado na mesma linha de desbravar territórios narrativos diferentes enquanto se mantém em uma familiaridade temática. Anomalisa soa, nesse caso, como o mais perfeito modo a de conceber o universo de Kaufmann por toda a liberdade com a forma que animações proporcionam e com o stop motion, que foge do padrão estético da Hollywood atual e que pode eventualmente proporcionar momentos um tanto perturbadores (ninguém ai sentiu medo em Coraline?).

Além de intertexto, metalinguagem e criatividade narrativa, Kaufman sempre aborda universos puramente psicológicos que ultrapassam os limites entre realidade e devaneio, entre o que se passa na cabeça de alguém e o que acontece de fato. Diversos personagens, muitas vezes, servem como transmissão de ideias, como metáforas vivas e importantes para o propósito principal das histórias, que é tornar o espectador reflexivo e dialogar com ele sobre diversas das questões que nos aterrorizam e nos movem enquanto humanos.

Estou pensando em acabar com tudo possui todos esses elementos, porém, o seu diferencial é a ambição de seu diretor em expandir seus conceitos para um novo nível. Baseado no livro de Ian Reid, a premissa da história é bem simples: uma mulher sem nome (Jessie Buckley, muito entregue no papel) pensa em acabar o seu relacionamento com Jake (Jesse Plemons, em performance digna de Oscar), ou pelo menos é o que parece. Os dois embarcam em uma viagem ao interior para encontrar os pais dele, enquanto divagam sobre a vida, arte, trabalho e lembranças.

O cineasta mantém quase que dois terços do filme dentro do carro com essas divagações. Não entanto, isso não é apenas um exercício pseudo intelectual. Kaufman, deliberadamente, mantém os personagens presos dentro daquele ambiente que vai se tornando cada vez mais sufocante. A viagem é estendida porque ela retém esses dois personagens vivos presos em suas memórias, pois se voltarem ao mundo real podem encarar a solidão, a velhice e, consequentemente, a morte.

O título, portanto, possui um duplo sentido muito claro, que eu imagino que não precise mastigar para você, caro leitor. A obra, porém, não seria tão interessante na mão de outra pessoa. Apesar de se passar boa parte do tempo em um carro, Kaufman durante esse período revela vários elementos que o consagraram como contador de histórias. Durante um poema, por exemplo, a mulher cita que a nevasca la fora é sufocante e que chegar em casa ao fim de um dia é algo que a torna triste e deprimida. O diretor, nesse exato momento, corta para a personagem falando enquanto a câmera a capta do lado de fora do carro, com a nevasca dominando e deixando apenas uma pequena brecha na parte superior do quadro para que possamos ver a moça. Ela olha não para o seu namorado, mas diretamente para a câmera, quebrando a quarta parede e reconhecendo a presença do espectador com um olhar de tristeza que desarma o público e o imerge em sua dor. Estamos presenciando sadicamente dois personagens lutando contra seus próprios medos e pensamentos.

Kaufman também intertextualiza todo seu roteiro citando não só poetas, como também filmes e arte, para poder expressar o que seus personagens sentem, elemento esse que veio da história original de Ian Reid. Além disso, o cineasta igualmente se utiliza de uma montagem paralela dentro do carro para inferir determinados sentidos à sua narrativa, dando elementos para o público construir seu próprio pensamento sobre o que está vendo. A partir do segundo ato, a obra embarca em um espiral de loucura que simboliza perfeitamente o que eu quero dizer com ambição de forma.

O diretor flerta com o cinema de horror o tempo todo, algo que também advém do livro, e o filme subitamente se torna desconfortável. Kaufman ora sufoca os personagens com quadros fechados em seus rostos e objetos os fechando – que com a proporção de tela diferente do 16:9 habitual torna tudo claustrofóbico –, ora ele capta os personagens com um espaço enorme e vazio em tela para expor a solidão crescente que eles vivem.

O segundo ato segue te fornecendo informações para construir seu quebra-cabeças e todas elas contribuem para os importantes temas que o filme aborda. O tempo novamente se estende a serviço da narrativa, te fazendo compreender as diferentes fases da vida, passeando por todas as dores do envelhecimento e pondo a prova a ideia de relacionamentos longos e duradouros, o teste do tempo imposto, nesse caso, diretamente aos indivíduos.

O filme também toca no campo das memórias, um tema importante para o diretor, como fica claro em seu roteiro de Brilho Eterno de uma Mente sem LembrançasAqui, o tempo também implica na construção do reino das memórias, reino esse que pode tanto ser um local de segurança, onde você se sente bem perante o avanço do tempo, quanto um elemento de prisão, que te deixa escravo do passado e te permite se sentir amedrontado com o futuro, solitário, amargurado com seu estado de vida. Assim como na obra de Michel Gondry, Kaufman também associa o esquecimento e a decepção ao relacionamento amoroso, utilizando de maneira criativa esses efeitos dentro do filme.

Dessa forma, o longa continua transitando entre gêneros até o seu final, constantemente desafiando a lógica e construindo símbolos sofisticados. É curioso ver como Charlie Kaufman tem um domínio perfeito de sua narrativa, conectando todos os elementos de maneira perfeita para potencializar a experiência e te manter imerso e pensativo durante às 2 horas e 15 minutos da produção. O diretor, consciente do que faz, debate justamente a negação à sua obra perfeitamente planejada, mas que pode ser vista como algo pedante e repetitivo, o que é explicitado em um diálogo inteligente em que a metalinguagem vai buscar Uma Mulher sob Influência, de John Cassavetes, para exemplificar a autocrítica. Não somente autocrítico, mas também irônico e autoparódico, o cineasta entende muito bem as consequências de sua complexa e até um pouco bizarra experiência, e ao invés de ignorar esse fato, ele abre o debate dentro do próprio filme, o que é uma atitude um tanto quanto admirável.

Estou pensando em acabar com tudo é mais uma prova da sofisticação narrativa e da genialidade de Charlie Kaufman, uma experiência que jamais questiona a capacidade do espectador e que tem muito a dizer. Desde que você aceite ser levado pelo filme, vai descobrir 2 horas das mais malucas e gratificantes de 2020. Kaufman não decepcionou. Ainda não.

Nota: ★★★★★

 

Título Original: I’m thinking of ending things

Ano: 2020

Direção: Charlie Kaufman

Roteiro: Charlie Kaufman

Elenco: Jesse Plemons, Jessie Buckley, Toni Colette, David Thewlis, Guy Boyd

Fotografia: Lukasz Zal

Trilha Sonora: Jay Wadley

Montagem: Robert Frazen

Figurino: Melissa Toth

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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