Na Netflix | O Diabo de Cada Dia

 

“Só na presença da morte, ele podia sentir a presença de algo como Deus.”

 

Os Estados Unidos da América são um país historicamente construído através da violência e do derramamento de sangue. Seja através da guerra ou da brutalidade diária presente em seu território, a nação tem em sua construção a dizimação dos povos originários, uma Guerra Civil sanguinária, assassinatos de presidentes e ativistas políticos pelo direitos humanos, uma sucessão de serial killers, uma violência policial constante contra minorias e a liberdade de poder comprar quantas armas quiser em uma loja da esquina.

Gerações e mais gerações foram moldadas nessa realidade sangrenta, acabando por naturalizar essa hostilidade e replicá-la. Numa terra em que parece que o Diabo domina, ironicamente, o fanatismo religioso tem espaço. Para essas pessoas, a religião é a válvula de escape, o contato desesperado com Deus, implorando por uma solução de algo que sua insignificância humana não tem poder para mudar. Será que Ele escuta? Será que Ele está realmente presente?

É através dessa mistura de violência e religião em O Diabo de Cada Dia que o diretor Antonio Campos (Christine: Uma História Verdadeira) apresenta a sua visão sobre os Estados Unidos.

Baseado no livro O Mal Nosso de Cada Dia escrito por Donald Ray Pollock – que curiosamente é o narrador do longa –, o filme se passa entre as décadas de 50 e 60 (pós-Segunda Guerra Mundial e pré-Guerra do Vietnã) e tem no centro da história o personagem Arvin Russell (Tom Holland). Marcado por uma infância repleta de traumas, o jovem cruzará com diversas figuras moldadas pelo ambiente violento, brutal e sangrento da região, entre elas um casal de serial killers (Jason Clarke e Riley Keough), um policial corrupto (Sebastian Stan) e um falso pastor (Robert Pattinson).

Antes de qualquer coisa, é importante apontar que O Diabo de Cada Dia é um filme explícito nas suas intenções. Seus personagens são cruéis, frios, sádicos e totalmente corrompidos. São violentados e praticam a violência, da mesma forma que alguns são patéticos e covardes, e outros completamente loucos e/ou maus. Praticamente impossível manter a sanidade numa realidade sombria como a explorada pelo filme. Campos não esconde que quer ver o espectador testemunhar a espiral de violência e sangue presente no arco de cada uma das pessoas que vemos em tela.

Em meio a um ambiente tão cruel, o apelo fanático a Deus é natural. Na igreja é onde, na concepção daqueles indivíduos, há um alívio, uma palavra de consolo, um respiro em meio a uma existência que está na corda bamba entre a vida e a morte. Sofrimento, dor, luto, medo, apenas Ele é capaz de aliviar um pouco o peso disso tudo no dia-a-dia daquelas almas. Esse cenário é perfeito para que os exploradores da fé alheia possam se aproveitar da fragilidade daquelas pessoas. Alguns podem até mesmo acreditar que são escolhidos por Deus para dar seus testemunhos e serem instrumentos Dele entre nós, mas outros querem apenas manipular, usar e abusar da confiança depositada pelos fiéis.

Para personificar uma gama de personagens tão danificados, o elenco sem dúvidas é o ponto forte do longa. Aqui, Tom Holland como protagonista demonstra possuir mais talento do que se vê em seus filmes como Homem-Aranha. No entanto, quem brilha em O Diabo de Cada Dia e prova mais uma vez ser um dos melhores atores de sua geração é Robert Pattinson.

O trabalho feito pelo ator com o olhar, tom de voz e expressões poderia facilmente terminar no caricato, mas Pattinson é habilidoso ao não cair na armadilha. Ele nos entrega um pastor manipulador e cínico construído nos detalhes que permanece com a gente mesmo após o fim do longa. Quando Robert e Tom contracenam em dada cena dentro da igreja, temos uma das melhores (talvez a melhor) sequências do filme. Se o mundo fosse justo, uma indicação ao Oscar do ano que vem de Melhor Ator Coadjuvante para Pattinson seria praticamente certa. Destaque também para as atuações de Bill Skarsgård, Harry Melling e Eliza Scanlen.

Sem medo de mostrar um lado obscuro e cruel de seu país, O Diabo de Cada Dia de Antonio Campos não é um filme fácil de ver, mas isso não significa que não possa ser apreciado pelo espectador. Com grandes atuações, o mais recente lançamento da Netflix é um retrato de uma sociedade corrompida que geração após geração tem a violência como denominador comum. Nesse lugar, os apelos a Deus não passam de gritos surdos.

Para assistir o filme na Netflix, é só clicar aqui.

Nota: ★★★★✰

 

Ficha Técnica

Título Original: The Devil All the Time

Ano: 2020

Direção: Antonio Campos

Roteiro: Antonio Campos & Paulo Campos

Elenco: Tom Holland, Bill Skarsgård, Riley Keough, Jason Clarke, Sebastian Stan, Haley Bennett, Eliza Scanlen, Harry Melling, Mia Wasikowska, Robert Pattinson

Trilha Sonora: Danny Bensi & Saunder Jurriaans

Fotografia: Lol Crawley

Montagem: Sofía Subercaseaux

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Vinicius Dias

Carioca graduado em Relações Internacionais, não sabe muito bem quando começou a sua paixão pela Sétima Arte, mas lembra de ter visto Tarzan (1999) no cinema três vezes e de ter sua fita dupla de Titanic (1997) confiscada pela sua mãe por assistir ao filme mais vezes do que deveria. Não gosta de chocolate, café e Coca-Cola, mas é apaixonado por Madonna, Kylie Minogue e Stanley Kubrick.

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