Na Netflix | Era Uma Vez um Sonho

 

Em 2016, J.D. Vance lançava o seu livro de memórias intitulado Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis que retrata os valores apalaches de sua família originária do estado de Kentucky e sua relação com os problemas sociais de sua cidade natal (Middletown, Ohio) para onde os pais de sua mãe se mudaram quando eram jovens. A região em que Vance passou boa parte da vida é conhecida como “cinturão da ferrugem”, originalmente chamada, até os anos 1970, de “cinturão da manufatura” por ter se desenvolvido economicamente devido às diversas indústrias estabelecidas no local.

No entanto, com a decorrência das décadas essa área passou a sofrer com o declínio econômico, desemprego e pobreza, virando sinônimo de decadência e lar da parcela da população estadunidense chamada de “white trash” (lixo branco) ou “hillbilly“: pessoas brancas, pobres e com baixa escolaridade.

Para muitos, o livro de J. D. Vance explica bastante a vitória de Donald Trump nas eleições de 2016. Por ter um discurso nacionalista pautado no slogan Make America Great Again, o candidato na época gerou um sentimento de que ele traria os bons tempos da região de volta e, consequentemente, os empregos e qualidade de vida de outrora para uma parcela da população esquecida e marginalizada.

Em Era Uma Vez um Sonho, a carga política esperada, assim como a exploração da cultura local presentes na obra original foram completamente despidas e em seu lugar surge um melodrama gritando a plenos pulmões que quer um Oscar. Em outros palavras, um típico Oscar bait.

No filme dirigido por Ron Howard (Uma Mente Brilhante e Solo – Uma História Star Wars), J.D. (Gabriel Basso), um jovem estudante de Direito de Yale, precisa voltar para a sua cidade natal em Ohio e enfrentar os problemas da sua mãe Beverly (Amy Adams) enquanto confronta as memórias de seu passado conturbado trazidas por aquele lugar, principalmente as que envolvem sua família, em especial a sua avó (vivida por Glenn Close).

Conscientes da polêmica gerada pelo livro na época de sua publicação, Howard e a roteirista Vanessa Taylor parecem ter optado por jogar de modo seguro. Escolheram a narrativa da busca pelo sonho americano como a base da história dessa nova produção, optando por descaracterizar o teor política das discussões de Vance, separando apenas o que aparentemente traria mais drama e impacto para a história.

Sendo assim, logo nos seus primeiros minutos, o american dream é apresentado – inclusive através de uma perspectiva religiosa – como parte da cultura estadunidense, sendo um dos principais pilares de sustentação da manutenção da ideia no imaginário popular de que os Estados Unidos é a “terra das oportunidades”. O protagonista é alguém que superou todas as adversidades da sua vida, saiu da situação de pobreza e falta de oportunidades em que se encontrava e correu atrás dos seus sonhos, conseguindo deixar para trás uma realidade que consumiu as esperanças de sua mãe e sua avó.

Contudo, a forma em que a história de J.D. é contada se apresenta como uma colagem de situações que nem sempre dialogam entre si, sendo uma colcha de retalhos onde as coisas vão acontecendo uma atrás da outra sem que haja necessariamente uma coesão narrativa. Tudo isso gera uma indiferença no espectador em relação ao desenvolvimento da história. E um melodrama onde quem assiste não consegue se identificar ou se envolver com o drama dos personagens, certamente tem um grande problema nas mãos, podendo estar fadado ao fracasso.

Em meio a isso, temos duas grandes atrizes que fazem o que podem com o material que tem em mãos. Porém, só uma delas consegue brilhar e superar a sucessão de equívocos aqui. E essa atriz é Glenn Close. Ainda que sua personagem possua todos os traços de personalidade estereotipados normalmente atribuídos àqueles que vivem no local – corroborando para a continuidade do preconceito que muitos têm com essas pessoas e se descolando da tentativa do autor do livro de exaltar a população da região –, a atriz brilha.

Ela traz personalidade a alguém já vista diversas vezes antes, havendo verdade e potência no seu trabalho, ofuscando sua companheira de cena Amy Adams, que se apaga numa atuação carregada e longe do talento mais do que comprovado em filmes como A Chegada e O Mestre.

Talvez o maior culpado pelos problemas de Era Uma Vez um Sonho seja Ron Howard. O diretor já não vem de uma safra boa de projetos, intercalando um bom filme com outros vários ruins e nesse novo lançamento da Netflix o realizador mais uma vez erra feio o alvo. É um trabalho excessivamente expositivo, em que a inteligência do espectador é constantemente subestimada na insistência de planos detalhes desnecessários como se quem assiste não fosse capaz de entender o significado de uma ação de algum personagem. O diretor precisa gritar isso na cara do público.

Outro problema é o excesso de câmera na mão, utilizada por vezes sem a menor justificativa, além da sucessão de enquadramentos milimetricamente calculados para um ator soltar uma frase de efeito supostamente profundo com o objetivo de causar alguma emoção em quem assiste. É de dar vergonha.

Era Uma Vez um Sonho, antes considerado um dos possíveis candidatos ao Oscar do ano que vem, pode dar adeus ao seu propósito de conseguir alguma estatueta dourada, com exceção de Glenn Close. Surge como uma das maiores decepções do ano por conta da sua covardia em tratar os temas polêmicos presentes no material original, dando lugar a um melodrama que gera indiferença a quem assiste. Escolher um diretor burocrático como Ron Howard para comandar um projeto com tamanha potência foi, definitivamente, o erro fatal da Netflix. O título no Brasil não poderia resumir melhor o que esse longa prometia e nunca cumpriu com as expectativas.

Foi literalmente um sonho.

Para assistir o filme na Netflix, clique aqui.

Nota: ★★✰✰✰

 

Ficha Técnica

Título Original: Hillbilly Elegy

Ano de Lançamento: 2020

Direção: Ron Howard

Roteiro: Vanessa Taylor

Elenco: Amy Adams, Glenn Close, Gabriel Basso, Haley Bennett, Freida Pinto, Bo Hopkins, Owen Asztalos

Montagem: James D. Wilcox

Fotografia: Maryse Alberti

Trilha Sonora: Hans Zimmer & David Fleming

Gostou? Siga e compartilhe!

Vinicius Dias

Carioca graduado em Relações Internacionais, não sabe muito bem quando começou a sua paixão pela Sétima Arte, mas lembra de ter visto Tarzan (1999) no cinema três vezes e de ter sua fita dupla de Titanic (1997) confiscada pela sua mãe por assistir ao filme mais vezes do que deveria. Não gosta de chocolate, café e Coca-Cola, mas é apaixonado por Madonna, Kylie Minogue e Stanley Kubrick.

vinicius_bmcd has 84 posts and counting.See all posts by vinicius_bmcd

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *