Descubra um Clássico | Morte em Veneza (1971)

 

Poucas coisas são mais almejadas pelo artista que a beleza. Seja qual for a maneira como ele faz a sua arte, a beleza é o ideal a ser alcançado. Ele acredita que o que produz é belo, que o belo pode estar no feio, que o belo pode estar no nada. Ele aprecia e valoriza o que é lindo e, enquanto arte, é o que deseja doar para o mundo.

O protagonista de Morte em Veneza é um artista e, como tal, não poderia querer diferente. Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) encontra-se num dilema pessoal, confrontando sua arte e seus desejos mais profundos, à medida que tenta preservar sua integridade física e moral. Músico de sucesso, respeitado aonde quer que fosse, Aschenbach toma um tempo de descanso e decide se instalar em Veneza.

A ideia de revigorar-se vai por água abaixo quando, no hotel em que está hospedado, se depara com a forma viva mais bela em sua plenitude: um jovem polaco que está de férias com a família. A partir daí, ele encarcera dentro de si um sentimento que antes só experimentara em seu ofício: o desejo pela perfeição.

Transposição da obra célebre de Thomas Mann para o cinema, Morte em Veneza teve muito a ganhar com a abordagem narrativa e estética de Luchino Visconti. Com um texto complexo e cheio de nuances, o cineasta entrega um filme cujo enredo é simples, mas que é forte o suficiente para segurar o espectador e satisfazê-lo.

A Veneza de Visconti não é romantizada, como se esperaria. Ele não opta por mostrar tomadas de coberturas com belos planos gerais das águas típicas da cidade, que todos os anos atraem milhares de turistas apaixonados. Ainda que tenha oportunidade como, por exemplo, quando Aschenbach resolve partir e passa pelos canais, nós assistimos um longo plano fechado no rosto martirizado do personagem, enquanto sentimos o balanço da balsa pelas águas.

Ao longo de todo o filme, a câmera de Visconti passeia pelos grandes cenários da produção, seja pelos espaços suntuosos do hotel, onde o protagonista vê pela primeira vez o jovem, ou pelas areias da praia onde ele passa boa parte do tempo. A câmera observadora para em cada grupo de “figurantes” dispostos pelo espaço, sendo até possível compreender o que eles estão falando, fortificando a ideia de que o personagem é um tanto observador.

É numa dessas passeadas que Aschenbach se depara com o garoto Tadzio (Björn Andresen) e, desde então, não desgruda mais os olhos dele. Durante toda a projeção, seu olhar está sempre voltado para aquele objeto de amor platônico e para tudo que está ao redor dele. É interessante notar, aqui, como a ideia da homossexualidade permeia todo o filme, mas nunca se faz importante. A aparência andrógena do ator Björn Andrésen torna isso mais evidente. A atração de Aschenbach pelo jovem fica no campo da idealização, da perfeição, quase como um endeusamento de uma escultura de Michelangelo.

Morte em Veneza

A busca pela perfeição não é só uma alcunha para a beleza do garoto, está relacionada também à perfeição ideológica que Aschenbach aspira para si mesmo, a qual ele sempre desejou e colocou como base em sua vida. Sua rigidez moral sempre caminhara lado a lado com seu comportamento, e ali não seria diferente. Num dos flashbacks em que o vemos discutindo arduamente com o amigo questões ligadas à filosofia e à arte, Aschenbach escuta algo que não pode negar: “Quer que seu comportamento seja tão perfeito quanto sua música”.

Esses flashbacks, aliás, fazem um válido panorama do que levou o protagonista até aquele hotel praieiro em Veneza. Eles nos aproximam do personagem — funcionando mais que os excessos de zoom —, nos fazendo entender os porquês do comportamento daquele homem de meia-idade.

A atuação segura e intensa de Dirk Bogarde é fundamental para compor o complexo personagem e seus conflitos internos e, junto com a trilha sonora de Gustav Mahler, repleta de virtuosismo, somos transportados para todo esse momento angustiante da vida de um homem.

Ao passo que o filme vai chegando ao fim, encaramos um Aschenbach cada vez mais decadente em si mesmo. Nada evoluiu na não-relação entre ele e Tadzio; eles sequer trocam uma palavra. Aschenbach tem ataques de fúria, corre atrás de cuidar da aparência, se preocupa com o bem-estar do garoto num rompante de alucinação, definha completamente sobre as águas venezianas.

Morte em Veneza acaba por levar a refletir sobre o artista como pessoa. Aqui, a busca pela perfeição parece nunca acabar, mesmo quando ele desiste da procura; o poder é imponderável demais para ceder.

Nota: ★★★★✰

Ficha técnica

Morte em Veneza

 

Morte em Veneza (Morte a Venezia)

Ano: 1971

Direção: Luchino Visconti

Roteiro: Luchino Visconti, Nicola Badalucco, Thomas Mann

Elenco: Dirk Bogarde, Björn Andrésen, Silvana Mangano

Fotografia: Pasqualino De Santis

Montagem: Ruggero Mastroianni

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Evandro Lira

Evandro gosta tanto de filmes que escolheu a opção Cinema e Audiovisual no vestibular, e hoje cursa na UFPE. Em constante contato com a cultura pop, se divide entre as salas de cinema, as aulas sobre Eiseinsten, xingar muito no Twitter e a colaborar com o Clube da Poltrona.

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