Nos Cinemas | Nomadland

 

Contém spoilers. Leia por sua conta e risco!

 

Desde a estreia, Nomadland vem acumulando prêmios importantes na indústria. Além de vencer o Leão de Ouro em Veneza, o filme vem conquistando todas as estatuetas nos Estados Unidos e no Reino Unido, como o BAFTA de Melhor Filme e o Globo de Ouro de Melhor Filme – Drama. A chinesa Chloé Zhao, da mesma forma, vem ganhando todas as honrarias de direção. Tudo isso credencia a produção a ser a protagonista do Oscar 2021, tendo apenas a concorrência de Os 7 de Chicago em seu encalço.

Todos sabemos que não se ganha tantos prêmios sem campanha, constantes propagandas, mimos para os críticos e membros da Academia, eventos exclusivos e tudo o que uma grande produtora pode gastar para ter prestígio. É exatamente por isso que faço uma pergunta essencial: afinal, Nomadland merece tantos elogios e reconhecimento das premiações? Ele é, primordialmente, um bom filme?

Para responder essa pergunta, preciso voltar ao início. O longa se inicia com um breve contexto, o de que a cidade industrial Empire, em Nevada, virou uma cidade fantasma após o fechamento de uma fábrica de gesso, que garantia o sustento de muitas famílias, por conta da crise imobiliária de 2008. A nossa protagonista, Fern (Frances McDormand, a dona do filme), tira vários objetos do que aparenta ser a sua garagem. Ela para e abraça afetuosamente um casaco, por um breve momento.

Chloé Zhao mostra Fern por meio de grandes planos abertos em sua peregrinação pelas estradas americanas, parando no meio da paisagem gelada para urinar. Logo após, o título, sem qualquer alarde, caixa alta ou qualquer fonte estilizada, domina uma pequena porção da tela e assim a obra se inicia. Aqui, a diretora, de maneira simples, demonstra elementos importantes para entendermos quem é a mulher que vamos acompanhar no restante da obra: uma pessoa que exprime a perda e a saudade no olhar e que enfrenta as dificuldades de se viver em um país que esquece de seus trabalhadores.

Logo após um momento tão íntimo como uma necessidade básica ser apresentada de maneira tão cotidiana, os créditos sem glamour de Nomadland sobem também para nos indicar a estética aplicada pela cineasta chinesa: a da simplicidade. A fonte escolhida é tão sóbria quanto a câmera de Zhao, que por vezes adquire um teor documental que ajuda a aproximar a jornada dos nômades modernos americanos à realidade. A sobriedade, porém, anda de mãos dadas a um minimalismo e uma poesia visual que se mostram essenciais para a construção da persona de Fern. A diretora não dá um ponto sem nó, com cada plano e cena, por mais banal que seja, servindo à progressão da narrativa e à construção de sua personagem.

Enquanto a narrativa progride, somos apresentados aos nômades modernos, um povo que vive viajando pelas estradas americanas e pegando pequenos bicos em trabalhos de curto período, como restaurantes de beira de estrada e os imensos centros de distribuição da Amazon. É impossível não conectar esses trabalhadores a peças descartáveis, pois enquanto migalhas são oferecidas a eles, os grandes comerciantes enriquecem cada vez mais. Uma conexão que, se quisermos levar mais longe, chegará à China, terra natal de Chloé Zhao.

Os nômades modernos, porém, são um povo forte, que luta diariamente para sobreviver em um ambiente hostil. Suas dores e histórias são reveladas de maneira sensível, ouvidas com uma câmera observadora típica dos melhores documentaristas. Enquanto testemunhamos essas histórias – algumas delas retornando à tela mais a frente e ganhando belas conclusões –, somos atraídos para o vácuo da solidão de Fern.

Em uma das mais lindas cenas do longa, a personagem caminha por entre uma comunidade de nômades enquanto o sol vai descendo no horizonte. O diretor de fotografia Joshua James Richards capta todo o horizonte e as sombras das contra luzes que se impõem perante as figuras humanas, seguindo Fern enquanto ela anda em um traveling. Ali temos a revelação da solidão da protagonista, que caminha perante as pessoas, mas não se une a nenhuma delas, seguindo seu caminho sozinha. Esse movimento sombreado e belíssimo revela a dor do isolamento, pois por mais que a personagem queira se desvencilhar do passado, da morte que carrega consigo, ela não consegue e se vê distante das inúmeras pessoas que estão ao seu redor.

É óbvio que a personagem tem mais momentos para podermos notar bem sua solidão e sua amargura. Não somente uma vez, Zhao, que também é roteirista e montadora do longa, revela Fern observando uma fotografia de seu marido, se apegando a um conjunto de pratos que ganhou do pai ou mesmo à sua gasta van. A mulher não consegue se desvencilhar de seu passado, o que é interessante tendo em vista o tanto de novos lugares e pessoas que conhece.

A estrutura do roteiro é, portanto, curiosa, pois não se trata de um road movie em que alguém viaja com algum objetivo e se transforma durante o percurso. Fern tem oportunidades de mudar de vida, de encontrar um novo amor e constituir uma nova família ou mesmo de voltar à sua antiga, mas a vontade de lembrar do que viveu é maior do que tudo, de não deixar tudo se esvair e ser esquecido. A personagem, portanto, não deixa de ser quem sempre foi, o que dá ao filme um sentimento de que é mesmo um grande estudo de personagem, de como aquela mulher lida com tudo o que vive e viveu. Isso reflete na nossa própria capacidade de seguir em frente e ser resiliente perante nossas dificuldades, nos fazendo refletir sobre nossas experiências.

Das relações de Fern surgem temas existenciais que acrescentam à reflexão, como a superação de perdas, o companheirismo e amizade verdadeiras e a vontade de se desligar do sistema e morrer em um paraíso particular. É, porém, a relação com Dave (David Strathairn) que mais chama a atenção. A inclusão de um novo homem na vida da protagonista é propositalmente posta como uma invasão e um perigo para seu estilo de vida e suas memórias.

A cada nova interação, certos elementos visuais trabalhados pela cineasta deixam isso claro: a quebra dos pratos dados pelo pai de Fern; o passeio ao zoológico, que apenas revela uma interação dos dois personagens com animais perigosos (em uma delas, Fern diz que uma cobra apertou seu braço. Dave retruca dizendo que foi ele. Sugestivo não?); as fotos dos dois com um dinossauro, ou seja, uma criatura antiga que é uma metáfora à antiga vida da protagonista; a observação das estrelas, que brilharam em 1980 e só agora revelam a sua luz. Ao vislumbrar no fim do filme uma possível nova história, a mulher foge e volta para onde? Sua casa antiga. Todos os sinais trabalhados por Chloé Zhao são claros e existe um porquê exato de existirem.

Talvez o maior problema do longa é mastigar muito isso ao espectador. O problema aqui não é o filme ser facilmente sentido ou mesmo compreendido, mas sim da diretora, de certa maneira, insistir em falar a mesma coisa que já foi dita durante a obra, martelando informações desnecessariamente. Pelo menos dois ou três diálogos poderiam ser cortados sem quaisquer danos à produção. O desfecho também se beneficiaria da bela catarse anterior à sequência final, que também parece que sobra. Porém, tudo isso parece muito pequeno para o que o filme apresenta de maneira tão competente.

Além da sensível direção, da montagem enxuta (apesar do mencionado anteriormente, o que não invalida uma montagem que parece correta em sua abordagem e ritmo) e da fotografia naturalista belíssima, que utiliza muita luz natural e serve aos propósitos poéticos do filme, a trilha musical complementa muito bem a questão visual. Retirada de peças de Ludovico Einaudi, as músicas soam solitárias aos ouvidos, com uma beleza quase etérea. Não por acaso ela até briga com uma música que estava sendo cantada por um grupo em uma cena, mas sobe grandiosa e derrota a música diegética. A solidão, afinal, vence aqui.

Por fim, mas não menos importante, a atuação de Frances McDormand é brilhante. A atriz tem se especializado em papéis de personagens que internalizam suas dores, algo que já vimos em Três Anúncios para um Crime e em colaborações com os Irmãos Coen. Aqui, ela encarna Fern com um olhar perdido de tristeza, mas um sorriso doce pronto à ajudar um companheiro de estrada. A doação de McDormand ao papel pode ser sentida a cada gesto e a diretora explora isso diversas vezes, deixando a atriz dominar a cena e nos invadir com sua força.

Nomadland é, portanto, um belo exemplar do cinema independente sem qualquer interesse em ser tradicional o suficiente para o Oscar. Chloé Zhao merece sim todo o reconhecimento por arquitetar, talvez, não o filme mais urgente da temporada, mas sim o que melhor representa como pode ser difícil viver nos Estados Unidos. Como explica Fern para uma antiga aluna, é importante que se diga: homeless é diferente de houseless, ou seja, você não ter casa não significa que não tenha um lar.

Nos vemos na estrada, companheiros.

Nota: ★★★★★

Ficha Técnica

Título Original: Nomadland

Ano: 2020

Direção: Chloé Zhao

Roteiro: Chloé Zhao

Elenco: Frances McDormand, David Strathairn, Linda May, Charlene Swankie

Fotografia: Joshua James Richards

Montagem: Chloé Zhao

Trilha Sonora: Ludovico Einaudi

Gostou? Siga e compartilhe!

Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

tiagoaraujo has 36 posts and counting.See all posts by tiagoaraujo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *