Nos Cinemas | Bela Vingança

 

Atenção! Spoilers à vista.

 

Ei! Eu perguntei o que você está fazendo.

 

É com essa frase proferida por Cassie que a primeira sequência de Bela Vingança chega ao fim e, a partir daí, já sabemos que nem a personagem e nem o filme estão aqui para brincadeira. De cara, o questionamento sobre o respeito às vozes e vontades femininas já fica estampado na tela. Em 2021, aliás, já não deveria mais ser um questionamento o fato de que roupa ou estado etílico não são convites sexuais (o segundo, aliás, já deveria ser visto como um claro sinal de pare).

Intrigante talvez seja uma boa definição para o longa de estreia de Emerald Fennell. A atriz, mais conhecida por aqui como a intérprete de Camila Parker Bowles na terceira e quarta temporadas de The Crown, já tinha alguns créditos como roteirista para as séries Killing Eve e Drifters, mas assina o roteiro e a direção do seu primeiro filme de longa-metragem (e faz apenas uma pequena aparição como uma YouTuber em uma cena). Temos Carey Mulligan como a protagonista Cassandra (ou simplesmente Cassie) que, nas palavras da própria diretora, é uma espécie de anjo vingador — e esse fator angelical ou até divinal fica evidente em vários takes graças à ótima direção de fotografia de Benjamin Kracun

Em suas folgas do monótono trabalho na cafeteria de Gail (Laverne Cox), Cassie secretamente frequenta baladas onde finge estar totalmente alterada pelo álcool a ponto de não poder responder por si, o que atrai a atenção de certos homens que estão acostumados a agir no modo predador na primeira oportunidade que se apresenta. Chega a ser irritante ouvir, logo no início do longa, frases como “ela está pedindo” e “moças assim se colocam em perigo” sendo proferidas por essas criaturas que parecem dominadas por hormônios como se fossem animais selvagens. Mas essa irritação é fruto de uma necessária provocação que já coloca o espectador no clima da história.

Cassie era uma garota promissora, estudante de medicina e largou tudo, até a si mesma, após os acontecimentos com sua melhor amiga sete anos antes. À noite, é como se ela vivesse uma vida secreta e solitária onde é um pouco uma heroína. No lugar de superpoderes, salto alto, maquiagem, roupas sensuais e muita vontade de chutar bundas de machos escrotos, além de um cinismo e uma coragem sem tamanho, que na verdade vêm de um lugar pouco confortável: o estresse pós-traumático. Importante lembrar que Bela Vingança contém alguns gatilhos para quem já vivenciou situações de abuso ou violência sexual. Apesar de jamais adentrar realmente em cenas altamente gráficas, a direção e o roteiro de Emerald Fennell são extremamente competentes em fazer o espectador construir na sua mente mesmo o que não é mostrado.

Bela Vingança

As motivações da protagonista para esse aparente “experimento social” são reveladas para o espectador em pequenas doses ao longo do filme – outro elemento inteligente do roteiro de Fennell. A amiga Nina, que foi cruelmente abusada na faculdade e teria tirado a própria vida após ser desacreditada por quase todo mundo que a cercava, se torna tão presente quanto a própria Cassandra, já que as duas sempre foram unha e carne e estarão eternamente unidas por uma dor gigantesca. Carey Mulligan, aliás, é uma escolha muito acertada, porque consegue dar o nível certo de frieza e angústia para Cassie sem deixar o carisma de lado. É enigmática e interessante. O que aparenta ser uma femme fatale em tons chiclete, na verdade esconde uma personagem com dores profundas e a tal da culpa que acompanha tantas — se não todas — as mulheres todos os dias.

No caso de Cassie, a culpa por ter deixado a amiga sozinha na noite do ocorrido foi o que desencadeou o trauma e, por consequência, a vontade de se vingar desse comportamento tóxico por parte de homens. Seu caderninho mostra que não são poucos os caras que tratam mulheres embriagadas como meros objetos de prazer. Inclusive homens que parecem bastante inofensivos e bem intencionados podem ser abusadores em potencial, dependendo apenas da circunstância, como é o caso de Jerry (Adam Brody).

Não fica bem claro o que nossa heroína faz com eles, mas deve ser uma lição e tanto. Não creio que ela mate ninguém, pois não há nenhum vestígio de que ela tente fugir de uma investigação policial. No entanto, certamente há pelo menos algum tipo de tortura que deixa os supermachos constrangidos demais para fazer alguma denúncia (até porque, o que eles iam dizer? “Eu estava tentando me aproveitar de uma moça bêbada e ela surtou”?).

Mas a vingança de Cassie toma outro rumo ao reencontrar Ryan (o ótimo Bo Burnham), um antigo colega da universidade que confessa sempre ter tido uma queda por ela (e caso você esteja se perguntando, sim, Burnham realmente bebeu o café com o cuspe de Mulligan na cena do reencontro). Ele traz notícias de outros companheiros de classe com quem ela cortou relações após o acontecido com Nina. Seria a oportunidade da catarse de sua vingança se apresentando? De colocar em prática um plano para punir as pessoas que estavam diretamente ligadas à desgraça de sua melhor amiga? De usar o seu “experimento social” para “resolver” o estopim de todo o seu sofrimento?

Alguns meios que ela usa em sua nova trilha de vingança são um tanto questionáveis por carregarem pouca sororidade, deixando outras mulheres em situação de perigo e desamparo. Um exemplo é o estado em que ela deixa Madison (a sempre excelente Alison Brie) completamente alcoolizada aos cuidados de um homem — ainda que ela queira dar uma lição por Madison ter duvidado e dado às costas para Nina, isso não envolve um abuso sexual, apenas a ideia de que algo pode ter acontecido. Mas, como confiar em um cara depois de tudo o que Cassie já viveu?

Dois pontos embaralham a cabeça da protagonista e começam a libertá-la de suas angústias: a visita ao advogado de defesa do abusador de Nina, vivido por Alfred Molina, que parece estar entrando em um colapso de consciência; e a possibilidade de um relacionamento saudável com Ryan, que aparentemente é um cara legal e que gosta dela de verdade. Ela se dispõe a deixar sua vida dupla para trás e quem sabe recomeçar, com passos pequenos, mas ainda assim, um recomeço. Porém, lembram o que falei sobre o cara legal poder ser um abusador em potencial? Bom, ser conivente com o abuso é quase igualmente ruim.

Por que o benefício da dúvida sempre é dado aos homens e nunca às mulheres? Esse é um dos questionamentos levantados em Bela Vingança, e muito pertinente. De forma geral, os homens contam com uma rede de suporte que perpetua e normaliza seus comportamentos. As desculpas são muitas, desde falta de maturidade, instinto, momento de fraqueza, “foi só uma brincadeira de mau gosto”, e por aí vai. É como se fosse mais fácil ter empatia pelo acusado, um possível culpado, do que pela acusadora, a possível vítima. Cassie (e Nina) sempre encontraram essa dificuldade por empatia. É difícil as pessoas acreditarem, parece uma piada ou só uma brincadeira de universitários jovens, até estar muito próximo de acontecer com você.

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A própria Cassie não está imune a dar o benefício da dúvida. Ela jamais cogitou que Ryan pudesse ter sido uma das testemunhas oculares do abuso de Nina, mesmo sabendo que ele era amigo de Al Monroe, o abusador, e que este estava acompanhado de amigos durante o fato. O soco no estômago de Cassie ao saber que o namorado foi cúmplice da barbárie e nunca se pronunciou é sentido pelo espectador, que a essa altura também já tinha se apaixonado pelo pediatra gente boa.

O final (que muita gente reclama), ainda que apresente algumas falhas bobas e conveniências, não apaga nem diminui a excelente narrativa construída por Fennell ao longo dos 113 minutos de filme. Cassie sabia que o grand finale de sua vingança era arriscado, perigoso, e por isso se precaveu para se as coisas dessem errado para ela, ainda darem certo de alguma maneira (mas, por favor, algemas melhores não seriam má ideia). Achar que ela partiu para o auto-sacrifício, para morrer como uma espécie de mártir, é ter uma visão simplista que não percebe que aquele ato estava para além do racional, além de naturalizar o comportamento violento de Al como algo absolutamente dentro do esperado.

Bela Vingança

Bom, mas nem só de um ótimo roteiro vive um filme. Além da já citada fotografia que, com seus planos ressaltando emoções e cores pastéis simbolizando a inocência há muito perdida, funciona muito bem para contar uma história cheia de nuances cômicas e dramáticas — e, por que não dizer, quase debochada —, outro ponto alto de Bela Vingança é sua trilha sonora. Fã convicta de música pop, Emerald Fennell não economizou ao, através da trilha, dar uma atmosfera cheia de personalidade regada a Britney Spears, Spice Girls, Cyn e até Paris Hilton. Uma trilha quase toda feita por mulheres.

Outra excelente surpresa é ver vários rostos conhecidos (porém, não necessariamente tão famosos) da TV e do cinema. Além de Alison Brie (Mad Men, GLOW, Community), Adam Brody (The OC), Laverne Cox (Orange is the New Black), do super veterano Alfred Molina (Frida, Homem-Aranha 2) e de Bo Burnham (que dirigiu o ótimo Oitava Série), o filme traz participação especial de Jennifer Coolidge (de American Pie e Legalmente Loira), Christopher Mintz-Plasse (Superbad e Kick-Ass), Connie Britton (da série Nashville), Molly Shannon (Saturday Night Live), Max Greenfield (New Girl) e Chris Lowell (GLOW, Veronica Mars).

Homens (e lembrando que isso é uma generalização e não uma regra) não se importam em constranger mas não aguentam ser constrangidos. É pouco provável que eles aguentassem o tranco se tivessem que passar pelas mesmas provações que as mulheres, de serem desacreditados, silenciados ou julgados sempre como culpados de ações que não partiram deles. Indicado a 5 Oscars, Bela Vingança vem com seu charme feminino, um sorriso inocente no rosto, um visual doce e aura pop, para meter o salto alto na porta e dizer: o que você pensa que está fazendo?

Nota: ★★★★★

 

Ficha Técnica

Título Original: Promising Young Woman

Ano: 2020

Direção: Emerald Fennell

Roteiro: Emerald Fennell

Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Alison Brie, Laverne Cox, Chris Lowell, Max Greenfield, Jennifer Coolidge, Clancy Brown, Alfred Molina.

Fotografia: Benjamin Kracun

Trilha Sonora: Anthony Willis

Montagem: Frédéric Thoraval

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Roseana Marinho

Roseana é publicitária e acha que os dias deveriam ter pelo menos 30h para trabalhar e ainda poder ver todos os filmes e séries que deseja. Não consegue parar de comprar livros ou largar o chocolate. Tem um lado meio nerd e outro meio bailarina.

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