Annette | Na Mubi

 

Atenção, esse texto pode conter spoilers. Leia por sua conta e risco!

 

So, may we start?

 

Quem tem problemas familiares, especialmente paternos, sabe o quanto isso afeta e acaba moldando a vida de quem sofre. Às vezes, grande parte do que essas pessoas precisam é que seu pai ou mãe façam uma reflexão sobre suas atitudes e peçam desculpas. Talvez não resolva o problema como um todo, mas é um primeiro passo muito importante para que haja um princípio de reencontro com seus filhos, podendo gerar uma possível reconexão ou não.

Em Annette, o diretor Leos Carax (Holy Motors), em seu primeiro filme falado em inglês, busca fazer uma reflexão sobre sua própria personalidade, e talvez do homem em si, da mesma forma que o utiliza como um pedido de desculpas para sua filha, Nastya, para quem dedica o longa.

Annette

Filme de abertura do Festival de Cannes 2021 e protagonizado por Adam Driver e Marion Cotillard, o longa acompanha o casal Henry McHenry (Driver) e Ann Deafranoux (Cotillard). Ele, um comediante stand-up com senso de humor muito particular e, ela, uma cantora de ópera de sucesso avassalador. A princípio considerados um casal improvável, ambos são completamente apaixonados um pelo outro, além de felizes e populares, o que atrai a atenção de uma multidão de fãs para o relacionamento dos dois. No entanto, após o nascimento de Annette, a filha do casal que possui dons extraordinários, o destino do casal muda completamente.

Centrado no personagem de Adam Driver, o protagonista Henry é dono de uma personalidade narcisista – reforçada pelo seu nome e sobrenome serem praticamente os mesmos, mostrando a sua necessidade de ser o centro das atenções – e de masculinidade frágil, que não suporta ver sua carreira entrar em decadência enquanto a de sua esposa ascende, especialmente a partir do momento em que Annette nasce. Enquanto Ann com a maternidade alcança mais e mais sucesso, parece que a partir do momento em que ele não está mais sob a luz dos holofotes tendo que disputar o espaço com a sua filha, sua vida entra em um espiral de alcoolismo, violência e inveja.

Annette

Outro ponto que reforça essa necessidade do protagonista de estar no centro de tudo é o uso das cores. Enquanto Henry usa roupas verdes e marrons, Ann usa o amarelo e o vermelho, que aos poucos vai sendo engolido pelos tons do marido. O lar do casal é cercada por uma floresta que pouco a pouco vai invadindo a casa, marcada pelas cores de Ann.

Ao mesmo tempo, o filme, no geral, também vai sendo dominado pelas cores de Henry, como se o personagem estivesse forçando o controle de tudo que está acontecendo, mesmo com Ann resistindo e tentando deixar a sua marca, que cada vez mais vai sendo engolida pelo marido. Isso deixa claro o caráter tóxico da relação do casal e também da personalidade opressora e violenta de Henry para com sua esposa, não conseguindo lidar com o sucesso dela.

Annette

Após um acontecimento trágico, a bebê Annette ganha mais espaço em tela e o filme passa a fazer uma crítica à exploração presente no showbusiness. De forma fantasiosa e metafórica, a criança é desumanizada ao literalmente ser representada por um fantoche, que será controlado e sugado pelo próprio pai, distante e indiferente da própria filha, para conseguir a fama e o dinheiro que ele mesmo não consegue mais.

A partir desse momento, o personagem “Maestro” (Simon Helberg) ganha importância em cena. Apaixonado por Ann, por quem teve um caso rápido antes dela se envolver com Henry, ele é recrutado para ser o tutor de Annette, que veio a desenvolver uma voz lindíssima herdada de sua mãe. Nesse momento, a bebê tem pela primeira vez uma figura paterna presente e carinhosa, nascendo aí uma conexão entre os dois.

Annette

Curiosamente, em paralelo, Henry começa a mudar seu estilo de roupa, cabelo e barba, passando a ficar mais e mais parecido com o diretor do filme, Leos Carax. E é nesse momento que as intenções do cineasta com Annette passam a ficar mais claras para quem assiste: Annette nada mais é que um pedido de desculpas de Carax para a filha.

Mesmo que o público não saiba o que de fato aconteceu na vida pessoal dos dois, é possível concluir que o francês se espelhou em Henry para fazer uma reflexão sobre suas próprias atitudes como homem e pai que afetaram diretamente a vida da sua família, em especial Nastya. Se de fato o diretor é exatamente igual ao protagonista ou se os acontecimentos do filme ecoam o que ocorreu na vida real, não sabemos, mas temos um exemplo da arte sendo utilizada como ferramenta de reflexão do artista.

Annette

Com canções compostas e produzidas pela dupla estadunidense Sparks, Annette é um musical muito particular – para não dizer estranho – que só poderia sair da cabeça de alguém como Leos Carax. A princípio aparentando estar perdido em suas próprias ambições, o filme, no fim, se apresenta mais “simples” do que parecia ser: é um pai utilizando o cinema para se desculpar com a filha. Que aproveita para se olhar no espelho e admitir seu narcisismo, a fragilidade do próprio ego, sua toxicidade e também o pavor de olhar para o abismo que habita nele próprio.

Para assistir o filme na Mubi, clique aqui.

Nota: ★★★★✰

 

Ficha Técnica

Título Original: Annette

Ano: 2021

Direção: Leos Carax

Roteiro: Ron Mael, Russell Mael e Leos Carax

Elenco: Adam Driver, Marion Cotillard, Simon Helberg, Devyn McDowell, Angèle

Fotografia: Caroline Champetier

Montagem: Nelly Quettier

Trilha Sonora: Sparks

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Vinicius Dias

Carioca graduado em Relações Internacionais, não sabe muito bem quando começou a sua paixão pela Sétima Arte, mas lembra de ter visto Tarzan (1999) no cinema três vezes e de ter sua fita dupla de Titanic (1997) confiscada pela sua mãe por assistir ao filme mais vezes do que deveria. Não gosta de chocolate, café e Coca-Cola, mas é apaixonado por Madonna, Kylie Minogue e Stanley Kubrick.

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