Venom: Tempo de Carnificina | Nos Cinemas
A franquia Venom é um fenômeno bem curioso, pois nem mesmo o mais otimista dos executivos da Sony conseguiria imaginar o tamanho do sucesso do primeiro filme lá no longínquo ano de 2018 (por incrível que pareça, ele estava em primeiro na lista dos mais assistidos da Netflix Brasil até pouco tempo atrás).
Com o pequeno investimento na produção se comparado a outras adaptações de quadrinhos da Marvel, qualquer coisa que mirasse o sério poderia parecer ridículo sem intencionalidade. Reconhecer o fator meio “trash” da obra foi uma escolha certeira do diretor Ruben Fleischer, o que pôde gerar uma tranqueira daquelas autoconscientes de seu papel ridículo, construindo assim uma comédia voluntariamente voltada ao entretenimento barato.
Enquanto eu olhava o Twitter, percebi um comentário do jornalista Fábio Gomes que definia exatamente a relação público/crítica com o filme: “Venom não tem a crítica, mas tem o povo”. Não seria o primeiro caso na história do cinema de uma franquia que as pessoas amam e geram bilhões aos estúdios em bilheteria, mas que não possuem qualidade o suficiente para prosperar nos dois frontes. Venom é, portanto, uma feliz descoberta da Sony, uma fórmula de sucesso que pode gerar um universo inteiro de filmes de vilões e até mesmo o estúdio conseguir trazer o Homem-Aranha de volta para casa.
Nesse segundo capítulo da saga do simbionte alienígena e de seu parceiro jornalista Eddie Brock (Tom Hardy), a roteirista Kelly Marcel não inventa muito. O filme é sobretudo uma comédia romântica em estrutura, dando ênfase ao relacionamento de Eddie e Venom. O jornalista não entende as necessidades sombrias de seu “amante” alienígena, o que é um dos pontos de conflito. Já o simbionte insulta o humano o tempo inteiro, o vendo como inferior.
A obra possui intermináveis brigas entre os dois, mas não daquelas profundas vistas na recente série Cenas de um Casamento, da HBO. A realidade é que parecem duas crianças fazendo birra por grandes bobagens, porque o roteiro em nenhum momento trabalha os conflitos dos personagens de maneira minimamente adequada. O mesmo acontece com o vilão Cletus Kassidy, interpretado de maneira tosca e exagerada por Woody Harrelson.
O personagem é sempre posto como um vilão sanguinário pelo texto, mas nada além de frases de efeito constroem a personalidade dele, o que o torna apenas uma caricatura. O que melhor funciona em Cletus é sua história de amor com Frances, que acaba gerando as melhores cenas do ponto de vista visual. Porém, o simbionte Carnificina entra como um novo elemento desse “triângulo amoroso”, o que poderia causar um desequilíbrio considerável, mas que na prática gera novas brigas aleatórias que apenas servem como muleta para a história se desenrolar.
Por que brigas aleatórias? Se voltarmos dois parágrafos, a resposta estará lá, mas como eu não quero te causar mais trabalho, vou repetir por aqui: falta de desenvolvimento de personagem. O Carnificina em nenhum momento tem motivações bem trabalhadas ou mesmo conflitos que passam do “sou malzão” e “preciso matar o Venom”. Nem mesmo aqueles vilões de James Bond são tão ruins, porque ao menos eles tem uma missão, nem que seja aquela genérica “quero destruir o mundo”. O Carnificina nem isso tem.
A obra não para por ai. Você deve saber, caro leitor, que comédias românticas sempre possuem aquele momento da reconciliação depois daquela briga que separa o casal de vez. Pois bem, Venom: Tempo de Carnificina utiliza a participação de Michelle Williams apenas como o catalisador dessa reconciliação, além do papel da mocinha em perigo que precisa ser resgatada pelo herói. É triste como cinéfilo ver uma excelente e reconhecida atriz desperdiçar o seu talento com um papel tão fraco e clichê. O filme possui outros coadjuvantes que, de tão apagados e formulaicos, nem merecem ser mencionados.
É evidente que o longa serve apenas como um episódio filler dentro da trajetória desses personagens. Nenhum deles evolui de verdade, aprende as clássicas lições sobre heroísmo ou mesmo se tornam mais maduros no relacionamento. Venom e Eddie ao fim da obra parecem os mesmos dois idiotas que começaram, o que nem sempre é um problema dentro da construção de um roteiro, dependendo de sua proposta, mas que aqui deixa cristalino um problema grave alimentado pela Marvel Studios: o da cena pós-créditos que vai amarrar franquias.
A produção parece apenas um prelúdio de um capítulo futuro importante: a reunião entre os universos do Homem Aranha, interpretado por Tom Holland, e do Venom, liderado por Tom Hardy. É óbvio que esse vai ser um grande evento comercial, mas é triste que a lógica de mercado prevaleça sobre a própria narrativa de um filme. Em qualquer escola de cinema, você vai aprender que uma obra deve ter um sentido próprio, deve satisfazer por si só, deve ser uma experiência única, mesmo que faça parte de uma franquia maior.
As continuações também têm o trabalho de expandir o universo do filme original, trazendo novos dilemas para os protagonistas e os fazendo crescer para novamente testá-los em uma terceira parte. Existem muitos casos de sucessos de continuações que seguem esses princípios, como Homem Aranha 2, Star Wars Episódio V: O Império Contra Ataca e Batman – O Cavaleiro das Trevas.
Venom: Tempo de Carnificina segue mais uma vez a lógica da Marvel Studios, que apresenta diversos filmes medíocres como capítulos intermediários que se tornam importantes por terem elementos de ligação com filmes maiores. O principal exemplo que me vem a cabeça é Homem Formiga e a Vespa, uma aventura que não possui qualquer relevância a não ser conectar um dos personagens a Vingadores: Ultimato.
Apesar de todos esses pesares, o longa ainda encontra algum conforto em sua descontraída atmosfera de comédia. As piadas de início funcionam bem, principalmente por conta do excelente trabalho de voz de Tom Hardy, que dubla o simbionte. O ator enlouquecendo e fazendo caras e bocas também é muito divertido, o que dá ao primeiro ato uma boa dinâmica. Do segundo em diante, as piadas parecem intermináveis e o que parecia divertido de início passa pelo problema da excessividade, cansando o espectador.
Por fim, o trabalho de roteiro de Kelly Marcel tem algumas interessantes passagens como a exploração de um desolado Venom, que sai para festas e encontra no álcool e na interação com outros humanos um alento, um respiro à tristeza da separação de Eddie. Nesse momento, o alienígena faz um discurso em público sobre a importância da liberdade e de ser quem realmente é, além do texto ter várias piadas como uma em que o simbionte fala que “saiu do armário de Eddie” ou mesmo um outro momento em que ele, no corpo da personagem de Michelle Williams, tem uma DR com o “amor de sua vida”.
Por mais que o roteiro não invista tempo em um desenvolvimento apropriado para Venom, essas passagens parecem indicativos que o personagem de fato ama Eddie Brock, e não penso nisso como um clássico caso de bromance, penso como de fato um amor romântico. É possível, portanto, interpretar o personagem como uma metáfora LGBTQIA+. O fato de você se sentir deslocado de seu corpo, mal compreendido pelo mundo a sua volta, te faz se sentir um alienígena, preso a convenções conservadoras da sociedade em relação a gênero. O discurso em que o simbionte clama por liberdade faz todo sentido levando em consideração essa linha de pensamento em prol da liberdade para ser você mesmo, sem barreiras.
O filme é muito menos sobre heróis e vilões, e muito mais sobre como operam as relações amorosas no século XXI. Esse tema é fascinante e se Venom: Tempo de Carnificina fosse mais fundo nele, certamente seria visto com outros olhos. Uma pena que o roteiro apenas trabalhe com resquícios dessas ideias e nunca as transforme em uma visão coerente sobre o assunto.
É do ponto de vista técnico, porém, que o filme mais brilha. A direção de Andy Serkis, com a assistência do excelente diretor de fotografia Robert Richardson, gera algumas cenas belíssimas do ponto de vista de composição de planos. Note o quão belos são os planos em que Cletus invade a prisão de sua amada e o plano da igreja, onde os dois pombinhos se casam. No primeiro, Serkis filma o vilão separado de Frances por um vidro. Os dois chegam bem próximos, até que Carnificina quebra essa divisão entre eles e o beijo acontece, o que quer dizer que o novo simbionte no corpo de Cletus veio para, finalmente, trazer os dois juntos novamente para consumarem o seu amor.
Do ponto de vista estético, ponto também para o cineasta na construção de seu Carnificina, que é bem amedrontador. As cenas de ação com ele têm um tom próximo do horror, que se beneficiaria do uso do gore se o filme pudesse ser mais adulto. Apesar disso, a rapidez e ferocidade com que Carnificina ataca os oponentes, em uma mise-en-scène correta que utiliza por vezes planos mais próximos e um ângulo holandês que entorta a linha do horizonte, dá uma sensação de violência, brutalidade e horror que é perfeita para o personagem.
A batalha final com Venom, inclusive, funciona muito bem enquanto cinema de ação. Infelizmente, existem poucas interações entre os personagens durante o restante da projeção, o que é decepcionante. Tudo fruto das excessivas partes de comédia e do drama mal desenvolvido no miolo da obra, o que acaba por transformar o terceiro ato em algo apressado, urgente em encerrar a trama. Mais uma vez a produção sabota a si própria sem qualquer escrúpulo.
Vale a pena mencionar também toda a sequência animada, com um traço vilanesco e rebelde que explica certas questões do passado de Cletus Kassidy. Essa solução visual do diretor Andy Serkis me lembrou imediatamente as incursões de animação 2D nos filmes de James Gunn. Certamente, é muito melhor do que os famigerados flashbacks, que se não forem bem utilizados, soam como um didatismo barato. Para a surpresa de zero pessoas, porém, o roteiro convenientemente oculta um elemento específico da história do vilão para explorar no clímax, mas apenas cita esse elemento de forma en passant e dá, pela milésima vez no filme, a sensação de falta de cuidado na construção do personagem.
Talvez a palavra que realmente defina Venom: Tempo de Carnificina seja mesmo autossabotagem, mas não se engane, caro leitor. Lembram que eu falei que a Sony encontrou uma fórmula de sucesso para seu universo de super vilões? Pois bem, mais vale um filme feito sob medida para o público que adorou o primeiro, do que algo que realmente se arrisca no horizonte tentando ser uma obra de qualidade. A autossabotagem é, portanto, consciente. Se contentar em ser um episódio filler em um esquema de multiversos Marvel é triste… Os executivos devem estar enxugando suas lágrimas com dólares nesse exato momento.
Nota: ★★✰✰✰
Ficha Técnica
Título Original: Venom: Let There Be Carnage
Ano: 2021
Direção: Andy Serkis
Roteiro: Kelly Marcel
Elenco: Tom Hardy, Woody Harrelson, Michelle Williams, Naomie Harris, Stephen Graham, Peggy Lu
Fotografia: Robert Richardson
Trilha Sonora: Marco Beltrami
Montagem: Maryann Brandon, Stan Salfas