Eternos | Nos Cinemas

 

Eternos, novo filme da Marvel Studios, trazia consigo muita expectativa por ser o primeiro projeto da Casa das Ideias com a diretora vencedora do Oscar Chloé Zhao. A cineasta possui uma forte assinatura, sempre explorando muito a relação entre homem e natureza, como os dois são intrinsecamente conectados. Zhao extrai dessa conexão imagens que refletem de forma perfeita os sentimentos complexos que cada personagem seu possui em seus dramas, pintando em cada quadro de sua obra uma poesia reveladora e intimista sobre cada um de nós.

O visual se liga muito organicamente aos temas inerentes à humanidade nos filmes da diretora chinesa. Nomadland, por exemplo, passa muito pelo sentimento de luto e de inadequação perante uma sociedade exploradora que só enxerga as pessoas como mão de obra, as descartando quando elas perdem suas qualidades utilitárias. O estilo de Zhao, tecnicamente falando, passa muito por luz natural, grandes ambientes, uso de sombras, contra luzes e grandes planos gerais que chocam com os planos íntimos dos seres humanos demarcados pela narrativa.

Eternos é, portanto, um projeto curioso desde seu anúncio. Como um estúdio, conhecido pela “Fórmula Marvel” e por podar diretores mais autorais (o caso mais famoso é o de Edgar Wright em Homem-Formiga), trabalharia com alguém com uma visão tão específica sobre cinema como Chloé Zhao? Será que finalmente a Marvel estaria disposta a ceder o controle criativo necessário para que essa parceria funcionasse?

O resultado dessa inusitada parceria é um filme com muito mais a cara e o estilo da cineasta chinesa do que qualquer outro projeto da Marvel com seu respectivo diretor. Tudo o que consagrou Zhao nos últimos anos está em Eternos: o bom desenvolvimento de personagens, os temas humanos, a mise en scène naturalista no trabalho com o drama etc.

A fotografia é bastante familiar para quem já viu outros projetos da cineasta, com a diferença de que aqui a diretora deve criar um senso de superioridade dos Eternos em relação aos homens, criar uma aura divina. Para isso, é utilizado muita luz do sol nos momentos de maior grandeza desses personagens, o que, junto de um bom trabalho de colorização, dá um tom dourado, imponente à imagem. A cineasta também enche a tela com a presença dos Eternos de uma ponta a outra do quadro em algumas ocasiões, dominando todo o ambiente e demarcando sua presença em tela.

O visual, impecável como de costume, traz ambientes como desertos, praias e locais gelados, mas aqui ele se mistura à recriação fantasiosa de cidades como a Babilônia ou mesmo lugares dentro do universo cósmico da Marvel antes inexplorados, trazidos diretamente dos quadrinhos em suas cores e personalidades. A predominância de luz natural retorna, assim como o uso de sombras e muito contra luz. Esses elementos da fotografia tem um peso levemente diferente de outros filmes da realizadora. O uso dos grandes ambientes denomina uma conexão tripla entre natureza, seres humanos e os Eternos.

É essencial para o roteiro que esses deuses se liguem ao ambiente terrestre e compreendam a bondade dos homens. Para construir isso visualmente, Zhao explora também civilizações novas e antigas, o que inclusive se conecta bem ao texto no sentido de mostrar como os problemas e virtudes humanos seguem os mesmos através das eras. A cineasta, porém, nunca se desliga completamente de seu naturalismo e da construção do drama em conjunto com ele.

Toda essa construção de universo passa primordialmente por um inspirado design de produção. Todos os Eternos possuem adereços dourados, para novamente reforçar a aura divina desses personagens. Além disso, o lado “alien” e cósmico deles é trazido por elementos importantes, como a nave em que chegam à Terra (uma referência direta ao monolito de 2001: Uma Odisseia no Espaço). Essa referência também conecta os Eternos ao tema principal da obra prima de Stanley Kubrick: a evolução. Esses personagens seriam uma evolução da raça humana, dotados dos mesmos sentimentos destes, mas com um diferente auto controle e uma capacidade maior de modificar a realidade a sua vontade.

Para complementar a questão técnica, é relevante falar sobre a mise-en-scène das sequências de ação. Os planos, mais abertos e longos que de costume, permitem acompanhar bem a geografia da cena, sem cortes intrusivos que te confundem só para o filme parecer dinâmico (alô, Michael Bay!). A dinâmica da movimentação dos Eternos também funciona, principalmente na primeira cena, em que os vemos combater os Deviantes. A realizadora aqui combina poderes, e a coreografia é fluída o bastante para dar a impressão que estamos acompanhando uma equipe que se completa na ação e que se une para derrotar os vilões.

Esse bom equilíbrio, porém, não aparece em todas as cenas de ação. Em algumas bem específicas, a ação parece desconjuntada, com heróis lutando sozinhos contra o vilão, enquanto outros apenas observam e aguardam a sua vez de entrar na luta, o que dá uma estranha sensação de que eles estavam se escondendo ao invés de ajudar os amigos. Isso é um problema, porque estamos tratando de um grupo de super heróis e não de um filme do Batman. O curioso é que Chloé Zhao acerta em algumas cenas e erra em outras, o que mostra que a diretora até se esforçou, mas não conseguiu manter a regularidade da ação e da tensão que essas cenas devem proporcionar ao espectador.

Já o roteiro do longa desenvolve muito bem a maioria dos seus personagens. Cada um dos 10 Eternos possui um bom tempo de tela e o filme gasta bons minutos em diálogos e situações para que possamos compreender a dor deles. Ikaris, por exemplo, tem um forte senso de dever e uma fé incorruptível, quase cega, o que podemos trazer para reflexão no nosso dia-a-dia, pois é fácil encontrarmos pessoas com o mesmo problema em nossos círculos familiares ou mesmo de amizades. A questão do dever, inclusive, é algo que é uma sina de todos os personagens aqui, pois eles devem fazer escolhas que repercutirão diretamente em vidas sendo perdidas, seja aqui na Terra ou no restante do universo.

Para justificar essas decisões, o roteiro segue por esse bom caminho, com cada personagem bem delineado em sua personalidade, em seu desejo, em sua intenção. Outro grande destaque do texto, talvez o maior deles, é o bom trabalho com a representatividade. Temos Eternos brancos, negros e asiáticos, representando várias etnias, assim como também personagens LGBTQIA+ e com deficiência auditiva, representando gêneros diferentes e a comunidade PcD.

Ter essa representatividade em um blockbuster de milhões de dólares é muito importante, pois permite que o público real do filme se veja em tela e perceba que qualquer um pode ser um super herói. Isso contribui para a moralidade da sociedade, com modelos positivos na formação de crianças e jovens ainda mais inclusivos, afim de transformar toda a sociedade em algo mais igualitário no futuro. Eternos é esse primeiro passo, sem qualquer restrição.

A grande prova disso é a naturalidade em que Phastos, o primeiro herói gay da Marvel, é desenvolvido. Sua família aparece em determinado momento, com uma passagem curta, mas honesta, tocante, que deixa claro que hoje uma família pode ser constituída de todas as formas possíveis, o que importa mesmo é o amor e a cumplicidade. Simples, efetivo e integrado organicamente à narrativa, esse núcleo familiar é o grande acerto do longa.

A polêmica cena de sexo também é um elemento positivo do texto, pois aproxima ainda mais os Eternos dos homens. A própria Chloé Zhao em entrevistas falou que o sexo é um bonito gesto de afeto entre duas pessoas, a manifestação física da atração, muitas vezes do amor. Sempre me soou um tanto bizarro que nenhum outro longa da Marvel Studios possuísse uma cena como essa, algo que foi alvo de críticas de Pedro Almodóvar por conta dessa falta de sensualidade. Apesar de não ser a cena de sexo mais aventuresca ou mesmo melhor dirigida, a intenção da cineasta e dos roteiristas em trazê-la comprova que havia maiores ambições na obra do que apenas apresentar o filme para crianças.

Apesar de todos esses bons elementos, o roteiro ainda tem muitos pontos de desequilíbrio que empurram a qualidade do texto para baixo. O primeiro e mais evidente deles é a superexposição narrativa. Temos uma cena completa de longos minutos em que um personagem explica para outro tudo sobre os Eternos: de onde eles vem, porque foram à Terra e quais são suas missões no universo. Um outro exemplo é que após o climax acontecer, um dos personagens explica o que eles acabaram de fazer novamente, como se o público não tivesse acabado de presenciar.

O grande problema com a superexposição é que o cinema é uma arte visual e sonora, o que permite a um criador trabalhar sua mise-en-scène a ponto de nos fazer sentir as emoções dos personagens, caminhar com eles em suas jornadas, entender a trama organicamente por meio, principalmente, da ação, princípio pelo qual o cinema existe (a palavra cinema vem do grego kinema, que significa, literalmente, movimento). Os melhores filmes, portanto, não falam pra gente o que deveríamos saber diretamente, ele utiliza o drama para nos mostrar.

É claro que, dependendo do projeto, a superexposição é mais aceitável. Se a obra pelo menos seguisse um padrão de explicar tudo até o fim, seria mais coerente, mas isso não acontece. Muitas coisas são simplesmente ocultadas do espectador, informações importantes para o fechamento dos arcos de alguns personagens. Por exemplo, um dos Eternos, ao fim do filme, faz algo com outro personagem que simplesmente não dá para entender, tendo em vista que o roteiro em nenhum momento parou para explicar que aquilo era realmente possível. Se existe tanta explicação para outras questões, porque não explicar algo tão básico?

Não me parece certo também o tom altamente melodramático que a trama assume no decorrer do filme. Não tenho problema algum com personagens discutindo seus problemas uns com os outros a plenos pulmões, sendo literais o tempo inteiro, afinal, isso funciona bem em telenovelas e outros produtos. O problema é que Eternos tenta ser um filme sofisticado desde o princípio, narrativamente e tecnicamente. O melodrama aqui, portanto, parece mais um elemento um tanto quanto “frankenstein”, fora de sintonia com o restante da obra.

Além disso, existem falhas no desenvolvimento de alguns Eternos. Muito embora eu tenha dito que esse elemento é um ponto positivo, eu frisei bem que a maioria dos personagens eram bem desenvolvidos, não todos eles. O exemplo citado anteriormente, Ikaris, serve para ilustrar bem esse ponto. Este Eterno possui sim um bom dilema e nos faz refletir sobre a fé cega na sociedade, mas dentro do próprio filme essa jornada do personagem é trabalhada com pouca ênfase, nos fazendo até mesmo esquecer de seu lado fanático e do seu senso estrito de dever. Algumas de suas ações também não são bem justificadas, servindo apenas para que a trama avance, mas sem um sentido muito lógico.

O que falar também da personagem Sprite, que o roteiro não nos dá nenhuma pista sobre algo que ela sente que é fundamental para seu desenvolvimento, apenas revelando isso num diálogo no meio do segundo ato de forma verbal? É um tanto frustrante que questões tão elementares pra alguns personagens não recebam o devido tratamento, ainda mais em um filme que passa tanto tempo trabalhando-os (filme esse de quase 3 horas, diga-se de passagem).

Continuando com as falhas, o tom cômico do filme é altamente exagerado e não funciona em nenhum aspecto. A maioria esmagadora das piadas não são engraçadas, ou quando são, o roteiro as repete infinitamente até se tornarem irritantes, como é o caso do documentário que está sendo filmado por Kingo (o personagem de Kumail Nanjiani). Por fim, mas não menos importante, tanto o texto quanto o trabalho da diretora Chloé Zhao falham em passar qualquer tipo de sensação de urgência, algo que deveria ser primordial.

O fim do segundo ato é cheio de falatório, enquanto o mundo se prepara para potencialmente acabar, e é claro que o texto tem que lidar com todas as pendências emocionais de cada um dos Eternos antes da batalha final, algo quase interminável. Isso gera, por consequência, um problema de ritmo da montagem, criando uma “barriga” um tanto desnecessária para o filme.

Tudo isso, além de outras falhas que não seguirei detalhando, me faz pensar em como esse roteiro é desequilibrado, assim como aconteceu em Viúva Negra. O seu teor esquemático também é notável, pois Eternos não tem uma progressão natural de acontecimentos sem o texto intervir com algum dispositivo para manter a trama seguindo até a sua conclusão.

Para finalizar todos os pontos, apesar do casting ter sido bom de forma geral, com vários atores de diversas partes do mundo gerando um elenco de múltiplas etnias, nem todos eles são bons ou mesmo carismáticos o suficiente para estarem nesse tipo de produção. Richard Madden, que interpreta Ikaris, e Kit Harington, o futuro Cavaleiro Negro, são extremamente limitados. O primeiro ainda é um caso mais grave por se tratar de um dos papéis principais e ter muita dificuldade de trabalhar seu personagem dramaticamente, enquanto o segundo não passa de uma nota de rodapé na trama. A atriz Gemma Chan como Sersi é até esforçada, mas também não consegue chegar ao nível de atores como Barry Keoghan (Druig), Salma Hayek (Ajak) ou mesmo Brian Tyree Henry como o excelente Phastos.

Como você, caro leitor, pôde perceber, esta crítica tem vários “mas” para cada ponto positivo apresentado. Portanto, é muito claro que Eternos acaba sucumbindo às suas próprias ambições de ser o exemplar mais diferenciado do Universo Marvel. Ele até tem certo êxito nesse quesito, mas nem sempre o diferente é necessariamente melhor. Nesse caso, faltou muito equilíbrio nas decisões da realizadora Chloé Zhao e um maior polimento do roteiro para realmente ser o exemplar épico desenhado desde o princípio. No mundo das ideias, porém, é um primeiro passo interessante e que deve ser refinado nas próximas produções da Marvel Studios, pois certamente isso gerará bons frutos, tanto em qualidade quanto em representatividade.

Nota: ★★✰✰✰

 

Ficha Técnica

Título Original: Eternals

Ano: 2021

Direção: Chloé Zhao

Roteiro: Chloé Zhao, Patrick Burleigh, Ryan Firpo, Kaz Firpo

Elenco: Gemma Chan, Richard Madden, Angelina Jolie, Salma Hayek, Kit Harington, Kumail Nanjiani, Lia McHugh

Fotografia: Ben Davis

Montagem: Dylan Tichenor, Craig Wood

Trilha Sonora: Ramin Djawadi

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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2 thoughts on “Eternos | Nos Cinemas

    • 19 de novembro de 2021 at 01:58
      Permalink

      Muito obrigado Lourenço. Fico feliz que tenha gostado!

      Reply

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