O Crime é Meu | Nos Cinemas
Cuidado, o texto pode conter spoilers. Leia por sua própria conta e risco
François Ozon, renomado diretor francês, retorna aos cinemas com O Crime é Meu (“Mon Crime”, no original), um filme que representa uma curiosa intersecção entre teatro e cinema, ao passo que explora as convenções do gênero Whodunnit para tirar delas críticas e observações sobre a sociedade ocidental de forma ácida e bem humorada.
O gênero Whodunit é aquele em que há um assassinato central, diversos suspeitos e um detetive (ou qualquer indivíduo) que investiga o caso até encontrar quem cometeu os crimes ou isso ser revelado aos protagonistas da história. No caso de O Crime é Meu, François Ozon utiliza apenas a premissa do assassinato para depois mergulhar em uma reflexão sobre como todo o sistema de justiça é absolutamente incapaz de resolver qualquer caso, tratando esses episódios por vieses de moralidades hipócritas as quais permeiam a sociedade francesa.
Essas moralidades hipócritas estão intimamente conectadas ao conservadorismo e, principalmente, ao machismo. Em 1930, na década em que a obra se passa, as mulheres ainda não possuíam direito ao voto e eram tratadas com inferioridade pela parcela majoritária da sociedade. O diretor e os roteiristas do longa decidem contar a história de Madeleine (Nadia Tereszkiewicz), uma jovem atriz fadada ao fracasso por não possuir oportunidades e ser mal tratada, seja por produtores de espetáculos teatrais, seja por homens com quem se relaciona.
Madeleine em uma reunião com o famoso produtor teatral Montferrand em busca de um papel acaba por ser assediada sexualmente por ele. Momentos depois, Montferrand é encontrado morto. Desiludida com sua vida e buscando virar o jogo ao seu favor, a atriz confessa o crime. Para tanto, nossa protagonista pede a Pauline (Rebecca Marder), sua melhor amiga e também uma advogada sem perspectivas de conseguir emprego, para defendê-la no caso.
É nesse ponto que o cineasta François Ozon começa a pesar sua mão na sátira. De forma ácida, são apresentados personagens masculinos que vão de idiotas completos a brutamontes mal intencionados. Isso permeia todas as esferas da justiça. O delegado de polícia, por exemplo, é um paspalhão que só quer salvar seus amigos e imputar o crime a Madeleine, mesmo sem qualquer prova.
Já o promotor de justiça é um daqueles que bradam que as mulheres querem destruir os homens a qualquer custo, um discurso falacioso que tem se tornado cada vez mais comum na modernidade. Dentro desse panorama, ainda surge a mídia sensacionalista, que tenta criar conteúdos especulativos e mentirosos, construindo narrativas que não importa se são verdadeiras ou falsas.
Com tudo isso posto, o cineasta inverte o jogo e traz para a sua trama mulheres espertas que se utilizam do sistema contra ele próprio para ganhos pessoais. É claro que Ozon corre o risco de fazer comentários clichês como o de que o crime não compensa, porém, o realizador em nenhum momento de sua narrativa tem a intenção de construir homens minimamente decentes, com algumas poucas exceções.
Portanto, o que parece é que por todo mal que sofreram e ainda sofrem, as mulheres apenas resgataram um merecido sucesso por suas qualidades como profissionais, ainda que os meios tenham sido dúbios ou mesmo imorais.
Sendo assim, a proposta da narrativa não é encontrar questionamentos moralistas, mas sim ir na direção oposta, questionando o porquê de não ser esperto em um mundo de egoístas que só pensam em si. Curiosamente, os homens decentes da obra trabalham em conjunto com as mulheres para ambos serem bem sucedidos em algumas situações exploradas pela trama.
Agora, se tratando do estilo do diretor francês, ele busca uma aproximação com o cinema noir, visível desde a clássica proporção de tela 4:3 até o trabalho com o preto e branco e sombras na fotografia. Isso não acontece no filme inteiro, mas sim em determinados momentos onde há a já comentada aproximação entre cinema e teatro.
Nesse caso, o realizador traz várias possibilidades para o crime principal por meio de diálogos de personagens. A cada diálogo, surgem na tela esses “momentos noir”, onde a similaridade com um diretor teatral explorando possibilidades de uma cena em ensaios torna tudo muito próximo da metalinguagem. Inclusive, há as famosas quebras da quarta parede em alguns momentos, o que deixa a relação entre cinema e teatro ainda mais estreita.
O cineasta ainda parece demonstrar uma certa admiração pela “magia estética” – ou mesmo uma certa transgressão – que alguns diretores do passado traziam aos seus filmes. Billy Wilder, por exemplo, é citado claramente com seu Semente do Mal no filme. A obra de Wilder tem questões também morais envolvidas, da mesma forma que outros filmes mais conhecidos do diretor como Se Meu Apartamento Falasse, que trazem leituras bem diferentes dos mundos perfeitos de outras obras da Hollywood clássica.
Comparativamente, o filme de Ozon também parece clássico em sua estética e esconde críticas ácidas em seu subtexto. O visual do longa, inclusive, é impecável, com efeitos visuais bastante dignos, uma direção de arte e maquiagem muito requintadas, uma trilha musical que remete diretamente a filmes noir e uma fotografia que emula perfeitamente algo clássico de Hollywood, contrastado a momentos de intervenção de direção.
Não menos importantes, a edição e mixagem de som possuem boas ideias que se somam à inspirada direção. Como exemplo, trago uma piada recorrente no filme que sempre me traz um sorriso no rosto quando lembro: uma atriz do cinema mudo reaparece na trama e todo mundo que relembra sua carreira cita um filme chamado “A Flauta Mágica” (ou algo parecido). Sempre que há essa citação, surge uma música tocada em flauta do filme em questão, o que dá um tom cômico bastante leve e interessante às cenas.
Por fim, há um ponto negativo que é preciso trazer. O roteiro, apesar de ter muitos méritos pela complexidade de suas discussões e pelo tom satírico bem empregado, peca no sentido estrutural, pois há uma grande dificuldade de articular desafios e obstáculos para derrubar a protagonista de sua inércia no segundo ato. Quando um problema finalmente é estabelecido, ele é facilmente resolvido e isso causa uma certa monotonia na trama, que parece se arrastar por alguns minutos até sua inevitável conclusão.
A despeito disso, O Crime é Meu é uma divertida obra que traz muito para se absorver e refletir, propósitos estéticos bem definidos, um elenco afiado e um tom cômico irresistível. É uma ótima pedida caso o filme estreie na sua cidade nesta quinta, dia 06/07.
Nota: ★★★★✰
Ficha Técnica
Título Original: Mon Crime
Ano: 2023
Direção: François Ozon
Roteiro: François Ozon, Philippe Piazzo
Elenco: Nadia Tereszkiewicz, Rebecca Marder, Isabelle Hupert, Fabrice Luchini, Dany Boon
Fotografia: Manuel Dacosse
Montagem: Laure Gardette
Trilha Sonora: Philippe Rombi