Priscilla | Nos Cinemas

Cuidado, o texto pode conter spoilers. Leia por sua própria conta e risco

 

Desde que Elvis, do diretor australiano Baz Luhrmann, estreou em 2022, muito se questionava sobre o diminuto papel de sua companheira, Priscilla Presley, na história do longa. Por mais que o filme mostrasse uma pequena parcela da queda de Elvis em seus últimos anos, a obra de Luhrmann focava nos grandes dons artísticos do cantor e em sua relação tóxica com o Coronel Tom Parker, deixando grande parte de sua atribulada vida pessoal de lado.

Sofia Coppola, dois anos depois, traz para jogo a sua visão dos fatos, dando o protagonismo agora à Priscilla e dando vazão aos seus sentimentos em relação ao seu relacionamento com o astro do rock. Baseado no livro “Elvis e Eu”, de Priscilla Presley e Sandra Harmon, o longa Priscilla explora o que é ser uma mulher dentro de um mundo dominado pelo ego e pela persona de um superstar.

A diretora começa trabalhando a delicadeza do mundo feminino. Priscilla, no início da obra, era uma garota que vivia uma vida normal em sua casa, na Alemanha. Ia para a escola, estudava, voltava para casa e frequentava uma lanchonete. Coppola trabalha essa persona mostrando pequenos objetos do quarto da protagonista, em que percebemos que existia algo de mundano ali, de jovem, do normal a que estamos acostumados.

Além da boa utilização da direção de arte para preencher os espaços em cena, a cineasta utiliza muitas cores claras e uma iluminação mais esbranquiçada, para dar o ar de inocência necessário à sua personagem. Dos vestidos leves, objetos cotidianos, à luz que ressalta a ingenuidade de uma jovem normal, tudo é construído para definir uma personalidade ao mundo de Priscilla.

Priscilla e Elvis

Esse mundo é invadido aos poucos pelo já astro Elvis Presley. A residência do cantor, que Priscilla frequentava em festas enquanto o conhecia, já possui ares diferentes. Os tons de cores são muito mais sóbrios e Elvis veste roupas escuras, contrastando com os tons claros da vida da protagonista. Isso demarca a entrada de um novo universo dentro do filme, que começa a dominar todo o resto.

Elvis começa a se relacionar com Priscilla e o que vemos é algo muito próximo ao grooming, que é quando alguém mais velho seduz uma pessoa mais nova deliberadamente. Em uma visita do cantor à casa da protagonista, ele solta o clássico “ela é muito madura para sua idade”, uma frase clássica de pessoas mais velhas que buscam relações com pessoas muito mais jovens – na época, Elvis tinha 24 anos enquanto Priscilla tinha apenas 14.

Tudo, porém, tem aquele revestimento de amor proibido por parte do artista, que vê em Priscilla uma inocência que quer possuir para si. Coppola, porém, não cai na romantização fácil dessas ações. Por mais que tudo pareça um sonho para a jovem personagem, os tons de cinza estão presentes em todos os espaços. Da ansiedade da moça em rever o amado que voltou aos EUA, ao derradeiro momento em que a protagonista se muda para Graceland, Elvis já contaminou toda a imagem do filme, que se torna mais sombria a cada minuto passado.

No segundo ato do filme, vemos a vívida adolescente do primeiro ato se tornando uma mulher solitária. Os tons de branco e coloridos se transformam em um contraste de bege e preto, com pouca vida. Priscilla busca, dentro de sua grande mansão (cheia de espaços vazios em contraste com seu quarto adolescente), autonomia para se expressar, para amar e até para sentir desejos sexuais, tudo constantemente reprimido por Elvis. A justificativa é sempre a mesma: eu decido o que você pode fazer, falar, vestir e sentir, porque você é minha.

Priscilla e Elvis

Em contraponto ao que Baz Luhrmann faz em seu filme, aqui Sofia Coppola mostra o lado egocêntrico, possessivo, controlador e até mesmo abusivo do astro do rock. A cineasta, porém, conduz isso em um lento processo. Inicialmente vemos um Elvis galanteador, talentoso, charmoso, que parece se importar de verdade com os sentimentos da protagonista.

Quando o filme começa a orbitar em seu mundo masculino, as camadas vão se desconstruindo e percebemos o homem frágil emocionalmente, mimado, alvo de suas próprias conquistas e que se entrega ao mundo das drogas e às picardias do sucesso. Coppola, portanto, foge da caricatura, mas nunca alivia na crítica aos abusos físicos e psicológicos que o cantor causava em sua esposa.

É evidente, porém, que apesar de fortes, as cenas possuem um teor sensível. A diretora assume o ponto de vista de Priscilla e mostra as ações erráticas de Elvis, como as traições, de modo distante, com a personagem vendo isso por meio de tabloides e revistas. Nas cenas em que ambos estão juntos, a violência é mostrada, mas sempre para deixar claro o teor errático da ação, em como Elvis, em questão de segundos, passa de um homem violento a um manipulador emocional.

Isso tudo é possível graças a Jacob Elordi. O ator consegue ser carismático e charmoso no primeiro ato, mas traça uma persona agressiva e arrogante ao astro no segundo, muitas vezes misturando tudo isso em uma única cena. A atuação do jovem é complexa o suficiente para tornar seu Elvis mais interessante enquanto personagem do que o showman de Austin Butler.

Elvis

A grande estrela do filme, porém, é Cailee Spaeny. A atriz desenvolve sua personagem com todas as nuances necessárias à Priscilla: da garota sonhadora à mulher solitária e que se encontra procurando por migalhas de atenção do amado. Sua química com Elordi também é grande, nos fazendo comprar os personagens e sua relação, além de ambos entregarem a intensidade necessária nas cenas mais pesadas de drama.

O filme deságua em um sentimento de que a liberdade estava distante de Graceland e é recompensador para o espectador perceber que Priscilla, na última e catártica cena, parte para uma nova fase de sua vida, uma em que ela pode encontrar finalmente tudo o que precisa enquanto ser humano para ser feliz.

Sofia Coppola mostra novamente que tem uma direção segura, hábil em trabalhar uma narrativa levando em conta a construção visual de universos que colidem entre si. A diretora nunca foge do conflito e das cenas desgastantes emocionalmente, as quais tornam Priscilla uma experiência tão incômoda quanto a de O Estranho que Nós Amamos, um filme de teor bastante semelhante e tão bem dirigido quanto (talvez até mais). Também é notável alguns momentos mais fora da caixa da diretora, como quando ela demonstra de forma audiovisual os efeitos das drogas nos personagens principais, com luzes e elementos psicodélicos transitando pela tela.

Já o roteiro da própria Coppola trabalha muito bem os arcos de personagens, principalmente os de Priscilla e Elvis, além de haver um teor reflexivo sobre um tema muito comum no cotidiano: os relacionamentos abusivos e como as vítimas se sentem perante seus abusadores. Isso é construído fugindo de estereótipos fáceis, de simplicidades narrativas, tudo para trazer a história que estamos acompanhando à patamares realistas, apesar de se passar em universo inacessível para a maioria, o da fama.

Priscilla

Os já citados direção de arte e figurinos desempenham um papel essencial para o desenvolvimento narrativo da realizadora. Além disso, a fotografia alterna a percepção entre a jovialidade e a sobriedade extrema, quase melancólica, por meio da luz branca que se torna mais obscura e do trabalho de câmeras com lentes grande angulares pertencentes à decupagem de Coppola, que fazem o espaço parecer grande demais, vazio, para Priscilla. Também vale menção para a impecável trilha musical da banda Phoenix, marcada por acordes mais lentos que evocam a solidão da protagonista.

Talvez o principal problema do longa seja a montagem e parte de seu segundo ato, que estufa o filme com acontecimentos um tanto repetitivos e desnecessários. Um exemplo é toda a sequência em que Elvis adota um guru espiritual, que nada parece acrescentar à trama que já não tenhamos visto, além de uma cena perdida de festa em que o cantor reclama dos Beatles. Isso torna o ritmo de projeção mais lento e compassado do que deveria, nos dando a sensação clara de que há uma barriga na metade da obra.

Nada disso, porém, apaga o brilho de Priscilla Presley e de sua história, contada de forma exitosa por uma das diretoras mais talentosas de sua geração, Sofia Coppola. Priscilla é mais uma amostra de que a sensibilidade de uma grande diretora é imprescindível para que mais histórias e experiências femininas cheguem ao público, e que isso possa gerar reflexões para afastar cada vez mais a normalização da violência contra a mulher.

Nota: ★★★★✰

 

Ficha Técnica

Título Original: Priscilla

Ano: 2024

Direção: Sofia Coppola

Roteiro: Sofia Coppola

Elenco: Cailee Spaeny, Jacob Elordi, Ari Cohen, Dagmara Dominczyk

Fotografia: Philippe Le Sourd

Montagem: Sarah Fleck

Trilha Sonora: Phoenix

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Tiago Araujo

Crítico e aluno de audiovisual, ama cinema desde os 5 anos de idade e não tem preconceito com qualquer gênero que seja da sétima arte. Assiste um pipocão com o mesmo afinco de um cult e considera Zack Snyder e Michael Bay deuses em formas humanas.

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