Fotogramas | Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças

Os corredores de ficção e literatura da Barnes & Noble. Este é o cenário para uma das cenas mais desoladoras de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Até o diretor Michel Gondry chegou a relatar que este é um dos momentos que o deixa mais triste, de todo o longa — chamando, em tom brincalhão, o co-roteirista Charlie Kaufman de sádico. Mas, sejamos justos: tanto Gondry quanto Kaufman são culpados pela melancolia da cena. A responsabilidade também recai sobre a diretora de fotografia, Ellen Kuras, as atuações sensíveis de Jim Carrey e Kate Winslet, e até mesmo sobre o compositor da trilha, Jon Brion.

Trata-se de uma das últimas lembranças de Joel (Carrey) a ser apagada pela Lacuna Inc. A esta altura, ele já desistiu de fugir do inevitável: Clementine Kruczynski (Winslet) será deletada completamente de sua memória. É tarde demais. Só resta a ele reviver aquela recordação uma última vez. A cena começa com Joel abordando Clementine em seu local de trabalho. É o primeiro encontro dos dois, após o dia em que se conheceram na festa da praia. Ela parece arredia à abordagem, afinal, ele a havia deixado sozinha na casa desconhecida, em Montauk.

É interessante observar que o início da cena é repleto de cores (as roupas e o cabelo de Clementine, as prateleiras cheias) e de movimento de pessoas na livraria. À medida que o diálogo avança, percebemos, uma a uma, as lombadas dos livros perderem seus títulos, tornando-se brancas. Esse fato, além de ser uma representação visual da memória de Joel sendo apagada, remete diretamente à vida do personagem antes de conhecer a namorada. O próprio já havia descrito sua rotina antes da moça como “vazia”. É como se sua existência fosse uma grande folha em branco. Um tédio incolor. Sua busca por realmente viver e sentir, sempre minada por insegurança.

A câmera parece inquieta na primeira metade da cena. É a agitação de Joel ao chamá-la para sair, sendo revivida. O frio na barriga pela iminência de um “não” (ou seriam as borboletas no estômago pela possibilidade de um “sim”?). Relembrar momentos com emoções tão dissonantes também causa frisson. É curioso o fato de que os enquadramentos e planos escolhidos sempre priorizam o rosto de Kate Winslet; enquanto o personagem de Jim Carrey parece sumir entre as prateleiras. Provavelmente, Joel se sentia exatamente assim: sumindo um pouco a cada memória feliz que lhe era arrancada.

A trilha começa ao fundo, exatamente quando Joel se desmancha após lembrar o discurso de Clementine. A agressividade e segurança com que ela se impõe às investidas dele provocam sentimentos pelos quais aquele homem sempre buscou. Os olhares ternos entre os dois, em seguida, tão cheios de melancolia, mas também de esperança, preenchem a tela com uma emoção quase palpável. Brilho nos olhos e dor. O filme coloca essas duas sensações lado a lado o tempo todo, mas o efeito é especial neste trecho.

Clementine, definitivamente, é o centro das atenções da cena. Com seus cabelos vermelhos e a blusa igualmente vibrante, ela contrasta com o ambiente já predominantemente branco. Reina como um sol; o sol que dava cor à vida insossa de Joel. De repente, não há mais nada ali. Não existem outras pessoas no ambiente, não há mais livros identificados nas prateleiras. Não há mais nenhuma memória a qual valha a pena se apegar por mais alguns segundos, a não ser Clementine.

Tanto o espectador quanto o personagem sabem: a hora do adeus se aproxima. No acontecimento original, Joel tentava uma segunda chance de conhecer Clementine, já que o primeiro encontro havia terminado tão desastradamente. Em sua lembrança, ele reflete o arrependimento pelo procedimento com a Lacuna Inc. Como seria bom poder ter uma nova oportunidade com Clementine! Mas, escolhas foram feitas. E mesmo que ele saiba que não vai se lembrar de algo para sofrer, a angústia de perder Clem ali, mais uma vez, é insuportável. Joel apagou a garota de sua mente para acabar com o tormento de lembrar-se dela sem poder tê-la. No entanto, acaba se livrando daqueles que provavelmente foram os melhores e mais doces momentos de sua vida.

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Roseana Marinho

Roseana é publicitária e acha que os dias deveriam ter pelo menos 30h para trabalhar e ainda poder ver todos os filmes e séries que deseja. Não consegue parar de comprar livros ou largar o chocolate. Tem um lado meio nerd e outro meio bailarina.

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