Descubra um Clássico | O Cremador (1969)
A exemplo de muitos movimentos cinematográficos como o Neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague francesa e japonesa, existiu aquela que é pouco conhecida, mas que merece toda atenção por parte de cinéfilos e estudiosos do cinema: A Nova Onda tcheca, dos anos 1960.
Composta por longas embebidos em Luis Buñuel, isto é, influenciados pelo Surrealismo e várias simbologias, foi uma passagem importante na Sétima Arte. Dela surgiram pérolas e diretores consagrados, como o saudoso Milos Forman.
Valerie e sua Semana de Deslumbramentos, As Pequenas Margaridas, O Baile dos Bombeiros foram algumas das preciosidades surgidas nesse período e O Cremador é outra obra injustamente desconhecida. No entanto, esse trabalho é consagrado como um dos maiores exemplos de “doutrina maléfica” sobre o ser humano: uma mudança perniciosa de caráter em alguém que aguarda apenas um comando.
O realizador Juraj Herz criou um grandioso estudo de personagem na figura de Kopfrkingl (Rudolf Hrusínsky), sujeito culto e admirador de música clássica, das artes, avesso ao fumo e à bebida e defensor da família/bons costumes. A profissão de cremador não é só uma satisfação financeira, mas também espiritual. “Do pó vieste ao pó retornarás” é uma frase proferida pelo personagem em conversa com o espectador, espécie de quebra da quarta parede. A missão de Kopfrkingl na Terra é livrar seres humanos da dor.
Toda essa trama seria normal se fosse situada em qualquer época, mas o filme tem como cronologia a pré-invasão nazista na Tchecoslováquia, durante a Segunda Guerra Mundial. Então há de imaginarmos uma mudança de personalidade nesse homem. Valores arraigados passam a ser questionados e a semente do mal é plantada em um simples “cidadão de bem”.
Apesar de ser um filme de época, O Cremador é um clássico do cinema justamente por sua atemporalidade: resquícios de racismo, ultranacionalismos, simpatias pelo Führer, xenofobias estão cada vez mais presentes em nossa realidade. Conservadorismo está espalhado pelo planeta e candidatos às eleições presidenciais que apresentam essas características têm grandes chances de vencerem o pleito. O discurso de ódio, todos esses eventos danosos à sociedade, estão ressurgindo. Imaginamos que, em pouco tempo, poderemos viver em uma distopia tão arrebatadora como já vista em várias obras, literárias ou cinematográficas.
O olhar cínico e psicótico de Kopfrkingl são verdadeiras faces de um sujeito que se esconde sob um manto do bom-mocismo. E a atuação de Rudolf Hrusínsky é sublime nesse aspecto. A transformação do personagem é assustadora e revoltante, vimos o surgimento de um monstro. O questionamento de valores que o personagem vai sentir, a partir de conversas com um membro de um partido nazista, é muito forte: duvidar de sua linhagem, se possui ou não sangue judeu; perguntar a si mesmo o que deve fazer com a esposa de origem judia e estranhar o comportamento afeminado do filho são algumas das fases pelo qual o protagonista passa antes do surgimento do Holocausto.
Adeptos do Nazismo pregavam a superioridade da raça ariana e muitos eram seguidores dos ensinamentos de Dalai Lama, o que é uma grande ironia. Uma filosofia pacífica do Budismo contaminada por ideais de Hitler. Kopfrkingl tem no Livro dos Mortos Tibetano uma filosofia de vida na profissão de cremador. Ao decompor o corpo e transformá-lo em cinzas, para o protagonista a alma do falecido se transformaria em éter, um dos inúmeros devaneios pré-psicopatia.
Comum à escola cinematográfica tcheca desse período, a fita tem diversas passagens que beiram o surrealismo e humor negro, como a sequência que se passa em um museu de cera. E flerta com outros gêneros, como o puro exercício de terror perto do fim da história. A montagem é bastante eficiente e complexa, emenda uma cena a outra sem se preocupar com tempo e espaço, tudo é interligado de maneira tão sutil que impressiona o espectador. Uma hora Kopfrkingl está recitando um monólogo em uma sala de jantar, e segundos depois continua a falar já no crematório, e assim por diante.
A sensação de estranhamento inicial vai dando lugar ao choque: acompanhar a mudança do personagem é assustadora. E isso vale para todos os governantes ou pessoas que têm grande influência sobre um povo. O Cremador é um clássico absoluto que é necessário para que possamos refletir sobre a natureza do mal, sobre o surgimento de ódio contra uma raça, contra cor, orientação sexual. Apesar de baseado em um livro de Ladislav Fuks, fatos reais como a ocupação nazista na Tchecoslováquia, eventos pré-Holocausto e Auschwitz dão mais veracidade ao filme. Uma profissão de cremador para libertar os impuros e o quanto seria tão importante para os nazistas ou qualquer doutrina que pregue o ódio: terror maior não há!
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica:
O Cremador (Spalovac mrtvol)
Ano: 1969
Diretor: Juraj Herz
Elenco: Rudolf Hrusínský, Vlasta Chramostová, Jana Stehnová, Milos Vognic, Zora Bozinová, Ilja Prachar, Eduard Kohout
Roteiro: Ladislav Fuks e Juraj Herz
Fotografia: Stanislav Milota
Que texto maravilhosos, baixei esse filme e estava com dúvidas se valeria apena assistir, pelo jeito sim.