Bang Bang | Os Imperdoáveis
O faroeste nasceu nos primórdios do cinema. Sua trajetória popular teve início no começo do século XX, com o importante e reverenciado O Grande Roubo do Trem. Logo, por sua longevidade, muitos diretores se arriscaram, através de diversas perspectivas e estilos, a contar determinadas histórias. E não é nada mais que natural que o revisionismo seja mais uma ótica para um gênero que se manifesta cansado e/ou utilizado de modo excessivo.
Enquanto Butch Cassidy (1969) é um revisionismo bastante romântico que graciosamente satiriza lendas do Velho Oeste e Meu Ódio Será Tua Herança (do mesmo ano) impõe um viés extremamente violento e gráfico, lá no começo dos anos 1960, John Ford faz uma releitura de sua própria carreira com o maravilhoso O Homem que Matou o Facínora, tendo a morte da figura ideológica e mítica do western (interpretada por John Wayne, é claro!) como seu testamento definitivo para demonstrar o esquecimento do passado.
Seguindo os passos de um dos maiores diretores da história, e também de seu mentor, Sergio Leone (outro gigante que contribuiu para essas múltiplas interpretações dentro desse contexto), Clint Eastwood dirigiu diversos exemplares de faroeste. Começou a partir da década de 1970 e atingiu seu ápice como cineasta em 1992, com a obra-prima Os Imperdoáveis — outro filme revisionista e vencedor de 4 Oscars, incluindo melhor filme e diretor.
A quebra do padrão pode ser notada em seus personagens: o protagonista é um indivíduo que tem contas a pagar pelas diversas mortes de inocentes muitos anos atrás; o xerife (símbolo de ordem e civilização) é cruel e injusto; as personalidades femininas são prostitutas (são as únicas, ironicamente, que não cometem diretamente nenhum ato de violência); e o mais jovem, apesar de não ser o que tanto fala, se conscientiza de que esse estilo de vida tão venerado é algo que não deveria considerar como objetivo.
Apesar de, esporadicamente, expressar por meio da fotografia elementos que compõem o típico faroeste (o laranja intenso em ambientes áridos e sujeitos andando em cavalos numa lente que provoca silhuetas, por exemplo), Eastwood é inteligente ao se afastar o máximo possível até do famigerado aspecto visual — tendo a chuva (algo raro dentro do âmbito inserido) como ferramenta, não só de construção de tensão devido aos sons dos trovões que antecedem os conflitos, mas também como um artifício para ilustrar a índole daquelas criaturas.
Como se não bastasse, a obra é elegante na forma de evidenciar todo o histórico do personagem principal, ao colocá-lo vestido numa camisa vermelha (não vívida, mas que muito se assemelha a sangue) para representar a natureza do mesmo, chegando ao ponto de também trajar um longo casaco para encobrir essa mesma camisa. Assim, estabelece-se, de maneira eficiente, não apenas seu passado selvagem, como também uma alusão ao fato do pistoleiro tentar, a todo custo, reprimir esses instintos.
Por consequência das intenções do filme, ocorre um estudo da vulnerabilidade da lenda: William Munny cai constantemente do cavalo e também não atira tão bem quanto antes; é praticamente uma desconstrução da própria imagem do mito. A colisão entre passado e presente permeia entre as imagens e diálogos, questionando o espectador sobre a possibilidade da completa recuperação moral para alguém que lida com memórias de puro terror e barbaridade.
Além disso, também há a desmistificação da figura do pistoleiro: não é quem atira mais rápido que, necessariamente, será o melhor, mas sim aquele que mira em partes cruciais — como também aquele que detém um mínimo de sorte para sobreviver.
E esse campo temático é explorado na incrível cena dentro da cadeia, em que ocorre um (quase) embate entre os personagens interpretados por Gene Hackman e Richard Harris. Em sua primeira aparição, o homem britânico brinda a plateia com uma demonstração da velocidade com que atira nos pássaros em céu aberto, porém, essa habilidade se revela completamente inútil diante da superioridade numérica de pessoas dentro daquela pequena e pacata cidade.
Em seus últimos minutos, a obra é envolvida numa história de vingança, na qual a realização da justiça com as próprias mãos (algo quase sagrado no final do século XIX) não foi devidamente respeitada. Sabemos exatamente o momento da transição quando presenciamos o anti-herói ingerir certa quantidade de uísque da garrafa, já que o alcoolismo e a matança a sangue frio não são mais coisas de seu feitio, por conta do novo rumo que sua vida tomou graças ao casamento com sua falecida esposa — concretizando, assim, as soluções sutis do roteiro para explanar e desenvolver o arco emocional de uma história em que certos personagens estão fadados à condenação, seja ela física ou até mesmo espiritual.
Os Imperdoáveis, em sua essência, é uma meditação sobre os pecados, das consequências das ações e do peso que cada um carrega dentro de si. Seu genial título é um modo de exteriorizar a natureza brutal dos indivíduos que vivem naquele mundo.
E a prova máxima do desvirtuamento e da inversão de valores é que Ned Logan, o amigo vivido por Morgan Freeman, é o único que não tem culpa alguma dos acontecimentos que fazem a trama andar e, mesmo assim, é assassinado. Portanto, o filme consegue a façanha de redefinir, em plena década de 1990, o gênero que parecia estar esgotado e quase fadado ao perecimento.
Nota: ★★★★★
Ficha Técnica
Título Original: Unforgiven
Ano: 1992
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: David Webb Peoples
Elenco: Clint Eastwood, Gene Hackman, Morgan Freeman, Richard Harris, Frances Fisher, Anna Levine, Beverley Elliott, Jaimz Woolvett, Saul Rubinek
Fotografia: Jack N. Green
Montagem: Joel Cox