Descubra um Clássico | O Martírio de Joana d’Arc (1928)
A década de 1920 pode ser considerada uma das mais importantes e relevantes para a arte de se fazer cinema. Além de conter obras-primas de renomados diretores, como Charles Chaplin, F.W. Murnau, Buster Keaton, Fritz Lang, D.W Griffith e Robert Wiene, em 1927, a indústria foi transformada para sempre com o primeiro filme falado: O Cantor de Jazz.
Dentro desse contexto, com o sucesso estrondoso do referido filme, o diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer, em 1928, até cogitou colocar som no que viria a ser considerada sua obra-prima; porém, por motivos puramente financeiros, a ideia foi descartada. Mal sabia ele que O Martírio de Joana d’Arc seria considerado um dos maiores filmes de todos os tempos justamente pela ausência da sonoridade, trabalhando como poucos a posição não só da câmera, como também de todos os personagens dentro do cenário, a ponto de magnetizar os olhos do espectador.
A genial escolha de Dreyer de pôr sua câmera sempre próxima da face de Maria Falconetti gera uma sensação claustrofóbica para simbolizar a situação em que a mesma se vê inserida (o julgamento da Igreja Católica).
Com isso, se dá espaço para a atriz, numa atuação icônica e desprovida de maquiagem, expor toda injustiça e sofrimento da protagonista — uma atuação tão minuciosa e complexa por explorar reações, semblantes e sentimentos sem a ajuda (na versão original) de qualquer recurso sonoro disponível da época, incluindo simples efeitos sonoros ou até trilha sonora.
O diretor é sábio ao optar pelo contra-plongeé (quando a câmera é voltada para cima, engrandecendo o objeto ou indivíduo filmado) como recurso visual para retratar o imenso poder estatal e hierárquico daqueles homens detentores de autoridade e influência quase incondicionais. Entretanto, também emprega planos fechados, com o consequente close-up, para destacar as faces dos mesmos que flertam com o diabólico e cruel.
Contudo, nunca utiliza o plongée para representar uma possível vulnerabilidade e fragilidade de Joana d’Arc, pois ela demonstra mais determinação e fé do qualquer outro personagem no momento mais difícil de sua vida, ainda que seja vista constantemente deslocada, sendo situada em cantos extremos da imagem como forma de evidenciar a opressão sofrida — chegando ao ponto de receber a recomendação de se vestir que nem uma mulher, uma vez que sua escolha de trajar vestimentas masculinas era considerada como pecado aos olhos da figura do cardeal e qualquer outro membro religioso.
É incrível, por exemplo, notarmos a elegância dos simbolismos que vemos ao longo do filme: se a figura histórica da França é a única que é acompanhada pelo símbolo cristão (algo irônico e revelador, já que grande parte dos personagens são membros da Igreja), o objeto que colocam em sua cabeça faz uma clara alusão à coroa de espinhos que Jesus também usou em seu momento de dor e humilhação.
Logo, é sintomático que, quando a personagem principal, ao ver tal objeto no chão depois de declarar (por meio da assinatura) sua culpa para não sofrer castigos físicos, a mesma se vê arrependida de tal ato e aceita seu fatídico destino por compreender que sua salvação espiritual é mais importante do que viver em negação em relação a tudo que acredita.
Mesmo com a simplicidade em sua produção e falta de recursos tecnológicos, o filme convence completamente em todos os âmbitos. No terceiro ato, com a inevitável morte da Donzela de Orléans ao ser queimada viva, se adquire todo o segmento, em seus últimos momentos, um viés extremamente poético ao colocar as chamas subindo ao enorme céu. Oras, depois de tanta aflição e tormento, nada mais justo que recompensar a plateia com uma imagem que representa o que tanto a protagonista almejava: sua entrada ao reino de Deus.
O Martírio de Joana d’Arc é uma obra-prima francesa que extrai verdade através de imagens que revelam espiritualidade, incompreensão e sofrimento de uma mulher que batalhou pelo seu país e pelo que acreditava ser o correto, tornando-se um ícone para o mundo de força, persistência e superação, além de ser objeto de estudo e fascínio para pintores, escritores e, logicamente, cineastas.
Nota: ★★★★★
Ficha técnica
Nome Original: La Passion de Jeanne d’Arc
Ano: 1928
Direção: Carl Theodor Dreyer
Roteiro: Joseph Delteil e Carl Theodor Dreyer
Elenco: Maria Falconetti, Eugene Silvain, André Berley, Antonin Artaud, Michel Simon, Armand Lurville, Louis Ravet, Jean d’Yd, Jacques Arnna, Léon Larive, Alexandre Mihalesco
Fotografia: Rudolph Maté
Montagem: Marguerite Beaugé e Carl Theodor Dreyer
Direção de Arte: Jean Hugo e Hermann Warm
Figurino: Valentine Hugo