Brazuca | O Céu de Suely

Uma imagem desgastada, como que gravada com uma Super 8, abre as portas para a vida de uma mulher fascinante, que parece sonhar quando entoa sua voz over para falar do homem por quem está apaixonada, e de quem espera um filho. As imagens românticas, e que desde os primeiros frames já soam como passado, logo se dissipam e dão lugar à realidade de um interior de um ônibus de viagem. Com um filho nos braços e umas malas surradas, Hermila (Hermila Guedes) está de volta à sua cidade natal. E sim, seu nome não é Suely, para a surpresa do desavisado que nada sabe sobre o longa de Karim Aïnouz.

Diria que Hermila ganha o interesse do espectador imediatamente por não ser a Suely do título. É como se já tivéssemos criado uma relação prévia com a tal Suely simplesmente pelas vezes em que ouvimos falar do filme. E aqui estamos, ouvindo um personagem chamar nossa protagonista por esse outro nome. A gente para um pouco, se pergunta se ouviu direito, até que acontece uma segunda vez, e ok, é isso mesmo, vai que o segundo nome dela é Suely…

Acontece que, aos poucos, Hermila se apresenta ao público e se mostra única, com sua fala mansa, um olhar meio perdido, carregando uma criança para cima e para baixo, sempre pendurada em um orelhão à espera do marido que prometeu voltar para a mesma cidadezinha onde os dois foram felizes não fazia tanto tempo.

O que pode se dizer com convicção sobre Hermila é que aquela era uma mulher apaixonada. Matheus era o pai do seu filho, de quem o menino puxara os olhos, o nome, e a quem ela faz declarações de amor mesmo quando estava claro que ele a abandonara. Porém, felizmente, sua ingenuidade não a torna fraca perante o espectador. Hermila só cresce à medida que o filme cresce junto.

Toda a mise en scène de Karin Aïnouz é construída de maneira que, assombrosamente, faz esquecer que aquilo se trata de um filme, que dirá uma ficção. Cada movimento de Hermila, cada fala, é tão natural e sutil que quase escapa da câmera. Os diálogos soam como se você tivesse entreouvindo uma prosa na pracinha do seu bairro. Imaginar aquelas falas previamente escritas num roteiro é impensável, elas só podem ter escapado da boca daqueles personagens reais.

o céu de suely

É praticamente impossível não questionar, pelo menos uma vez, se O Céu de Suely na verdade não se trata de um documentário; e se você por acaso ainda sabe que personagem e atriz têm o mesmo nome — a ideia só ganha mais força. Mais tarde, nos créditos, você descobre que todos os personagens (que são fictícios, olha só!) levam os nomes dos atores.

Com pouco mais de um mês da chegada de Hermila na pequena Iguatu, seus planos se vão com a ausência do marido, que ela sabe, nunca voltará. Entre uma música e outra dessas versões “abrasileiradas” de hits internacionais, ela conhece Georgina (Georgina Castro), uma moça da região que faz programa por 20 reais a hora. Certamente, uma influência para a decisão que ela tomaria em seguida: a de rifar a si mesma, ou como ela diz, rifar “uma noite no paraíso” com ela. Foi a maneira que encontrou de conseguir algum dinheiro para fugir para “o lugar mais longe dali” que conseguisse.

Aí que entra em cena Suely, a mulher que oferece uma noite no céu. Nada mais que um pseudônimo de Hermila. É interessante notar como a jovem não é tão ingênua quanto parece, a partir do momento em que assume outra identidade para vender a rifa. Ela sabe que em lugar nenhum a prostituição é bem vista, imagina numa cidadezinha como aquela…

Claro que ela não poderia se camuflar sob esse nome por muito tempo, Hermila se destacava de todo mundo ali. Os olhos da câmera de Aïnouz e Walter Carvalho deixam isso claro: se mantêm voltados para ela o tempo todo.  Ainda que fosse nascida e criada em Iguatu, Hermila já não pertencia mais àquele cenário. Pode-se dizer que era uma estrangeira, de volta da gigante São Paulo, com seus cabelos parte loiros, parte moreno, moderna demais para um lugar tão simples.

Sofre com o preconceito, mas o desafia, dá a cara a tapa e vai em frente. Hermila é traída pelo homem que amava, perde pessoas e se perde ao longo da sua jornada de tentar se encontrar, mas ela sabe que a vida não para. Suely precisou existir, mas não é real, seu paraíso é de uma noite, enquanto Hermila é de verdade e busca uma vida toda nele.

O Céu de Suely vai chegando ao fim e um misto de sentimentos se acomoda no espectador. A forma realista e sem firulas românticas com que o roteiro vai se despedindo de Hermila chega a ser doloroso, mas dependendo do ponto de vista também pode ser revigorante. E isso ficou claro principalmente depois que, discutindo o filme com outras pessoas, elas deram impressões completamente diferentes.

Pode-se dizer que me junto à parte do público que olha esperançoso para o futuro da Hermila que busca sem rumo o seu próprio paraíso, ainda que a realidade insista em nos lembrar que as possibilidades de encontrá-lo não são tantas assim. Mas não deixa de ser inspirador o fato de que ela poderia ter tomado a decisão fácil, e Aïnouz sabendo disso, usa de maneira magistral um longo plano-fixo, que nos deixa ansiosos até poucos segundos antes dos créditos, enfim, subirem.

Nota: ★★★★☆

Ficha Técnica

Ano: 2006

Direção: Karim Aïnouz

Roteiro: Karim Aïnouz, Felipe Bragança, Simone Lima e Maurício Zacarias

Elenco: Hermila Guedes, Maria Menezes, Zezita Matos, João Miguel, Georgina Castro, Cláudio Jaborandy e Marcelia Cartaxo

Montagem: Tina Baz e Isabela Monteiro de Castro

Fotografia: Walter Carvalho

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Evandro Lira

Evandro gosta tanto de filmes que escolheu a opção Cinema e Audiovisual no vestibular, e hoje cursa na UFPE. Em constante contato com a cultura pop, se divide entre as salas de cinema, as aulas sobre Eiseinsten, xingar muito no Twitter e a colaborar com o Clube da Poltrona.

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