Persona | Coringa (Batman: O Cavaleiro das Trevas)
“Eu sou um agente do caos.” Não há lógica para o Coringa. Maníaco, anarquista, autodestrutivo. Cada cena é dominada por um ar de desconforto. Até mesmo o Batman desempenha um papel secundário. Não é de se admirar que Heath Ledger tenha sido postumamente premiado com o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em 2008.
Muito mais do que uma voz maníaca de irracionalidade, tendências psicopáticas e um bolso cheio de granadas, a performance de Ledger foi capaz de trazer algo para o papel que nenhum outro havia conseguido antes: imprevisibilidade. Presente em todo seu trabalho corporal e monólogos existenciais, construídos por momentos de loucura e um absurdo (des)controle emocional. Roteiro e atuação somados que entregam a capacidade do ator de mergulhar em sua persona com um realismo assustador.
Não é somente atentar na maneira como o diálogo é entregue, o que já é genial, mas, para realmente ter uma noção das capacidades de atuação de Ledger é preciso observar seus maneirismos. Os olhos rápidos e sem foco; a lambida constante dos lábios; o riso hipnótico, mas misterioso, que reflete em sua alma. Seu cabelo emaranhado e oleoso o define como um homem despreocupado com a aparência, mas obcecado em minar a estrutura social do equilíbrio e da superficialidade. Ele não tem vergonha de quem é, por isso, se recusa a permitir códigos e regras para defini-lo como um ser humano. Ele vive para romper significados e criar o caos.
Heath Ledger X Jack Nicholson
Quando foi anunciado que Heath Ledger assumiria o papel que um dia foi de Jack Nicholson, muitos fãs torceram o nariz. Talvez, a implicância tenha sido atribuída ao desempenho do australiano em comédias românticas, (10 Coisas que eu Odeio em Você), e em como ele parecia inocente e sincero demais para assumir um papel tão desafiador e multifacetado quanto o enigmático Coringa. Mas, bastou ser lançado o primeiro trailer para que a audiência depositasse um voto de confiança no jovem Heath.
Criando um novo Coringa
Em Batman: O Cavaleiro das Trevas, a ideia vai ainda mais longe para expressar um senso de realismo. Sim, é um filme de história em quadrinhos, mas se esforça para se livrar de suas origens, a fim de transmitir uma compreensão de que isso poderia acontecer em qualquer lugar da sociedade atual. A performance de Ledger toca nesse aspecto, quando o ator busca referências na essência do personagem, para desconstruir a imagem estabelecida e recriar a personalidade caricata em algo mais tangível e autêntico.
Se o marcante Coringa de Jack Nicholson materializou o desenho do gibi para a tela, o de Heath vai em direção a tudo o que é humano e primitivo. Sádico, movido pela vontade de destruir, talvez para suprir um passado traumático ou para provocar seu rival, estabelece um diálogo existencial com o alter ego de Bruce Wayne. Ele ataca as fraquezas de Batman, tornando suas forças impotentes e o forçando a fazer escolhas difíceis. O brilho da escrita está em quão bem o Batman e o Coringa estão equilibrados. Nenhum lado pode vencer. Sempre haverá uma força criando o caos e outra lutando pela paz. E essa luta, sem um vencedor claro, é o que nos obriga a assistir.
Por que tão sério?
Mantendo o tom sombrio e realista da trilogia, os irmãos Nolan deram ao personagem uma história de fundo rica, realista e aterrorizante. O roteiro não declara de forma explícita, o passado do Coringa (como já foi contado nos quadrinhos de A Piada Mortal ), mas deixa subentendido, quando evidencia que seu desdobramento moral e físico, tenham sido causado por algum tipo de trauma, que não está ligado a algum tipo de tanque com compostos químicos, mas com relações mal sucedidas, principalmente causadas pelos abusos do pai. Mais uma vez, o roteiro capta a crueza na realidade do personagem ao dar um significado lógico para o comportamento psicótico e sua ânsia por destruição. O discurso moral é evidente.
Tal ideia é jogada em cena, quando Bruce pergunta à Alfred sobre quais seriam as intenções do Coringa, e ele define numa linha perfeita “Porque alguns homens não estão procurando por nada lógico, como dinheiro. Eles não podem ser comprados, intimidados, raciocinados ou negociados. Alguns homens só querem ver o mundo queimar”. Nesse momento, você sabe que ele está absolutamente certo.
Ator X Persona
Quase numa condição de esquizofrenia, Ledger se perdeu dentro da própria persona que criou. Um mergulho profundo na psique de uma caricatura e o desafio de humanizar a fera. De certa forma, os dois estavam muito próximos, travando lutas internas, na busca por algo inexistente. A relação ator/personagem foi visceral e conseguiu a faceta de reconstruir a maneira de como o público enxerga um vilão nesse diálogo entre o bem o mal, comum ao universo dos quadrinhos.
O Coringa de Ledger é uma contradição. É tão dimensional que tentar defini-lo de uma maneira única seria um erro. Ele é quem ele é, e, como resultado, torna-se uma das performances de cinema mais memoráveis de todos os tempos. Embora seja clichê afirmar, a verdade é absoluta. A DC Comics criou o personagem, mas Ledger fez dele real.