Cine Ceará | A Ponte; Plantae; A Menina Banda; Cabras de Merda

 

Dia 02

A Ponte

A primeira coisa que me chamou bastante atenção na obra foi a utilização das cores. De um lado, as os personagens vestindo roupas claras e vibrantes, já que estavam se dirigindo a uma celebração. Do outro, vestes mais escuras, do cinza ao preto, no máximo um branco, remetendo diretamente ao sofrimento daquelas pessoas, de luto.

Os idealizadores acertaram fortemente o local escolhido, toda mise en scène foi muito bem-feita, e isso é uma das principais coisas a se fazer quando se trabalha em apenas uma locação.

Infelizmente, as atuações não entregam o que deveriam, e mesclar uma comédia com uma dramaticidade mais pesada sem construir bem uma ponte entre ambos fragilizou a obra. Não a torna um desastre total, claro. Assuntos como compaixão social e ligações emotivas com o nosso passado são trabalhadas de forma decente. Mostrar que as pessoas só dão o braço a torcer quando sentem pena da situação do próximo foi muito bem elaborado; mantendo, assim, a obra de Rafael Câmara um pouco acima da média.

Plantae

Logo de cara nos impressiona o quão é lindo esteticamente esta animação, feita quase toda à mão, passeia pela selva, mostrando o quanto é rica e viva, e deixa o público ciente que todo aquele ecossistema é vivo e unido. A mensagem que o diretor Guilherme Gehr quer passar fica clara quando vemos uma borboleta pousando em uma árvore e fecha as asas, tornando-a literalmente invisível, como parte do tronco.

O som é algo muito importante para a obra, sons naturais são predominantes, ouvimos os grilos, as plantas e o vento. E no meio disso tudo, a motosserra derruba e corta uma árvore ao meio. Todo trabalho de mixagem de som é efetivo, tornando a imersão tão profunda que acabamos nos sentindo lá dentro da mata.

Em um certo momento, quando o homem consegue cortar a árvore ao meio, vários planos detalhes mostram partes daquela floresta desaparecendo; deixando claro que o mínimo que a machuque, fará falta. A metáfora das árvores voando e ascendendo aos céus é belíssima, e transmite um certo sentimento de dor ao público.

No finalzinho, quando o homem está parado coberto de uma luz vermelha, que expressa todo seu trauma por ter matado algo vivo, analisamos o perfil de alguém que sofre por fazer parte daquilo. Mas será obrigado a matar novamente se quiser sobreviver, observando o céu enquanto o remorso cai sobre seus ombros, quando a mãe natureza perde mais uma parte de si.

A Menina Banda

Em toda obra que se isenta de ter diálogos, tem que saber se expressar bem com as imagens, isso é óbvio, e quando feito de forma correta, normalmente é brilhante. Infelizmente, não foi o que ocorreu na obra do pernambucano Breno César. Assuntos como morte, vivência, infância, são abordados, mas de forma extremamente superficial.

Ao isentar o público de diálogos, ele tenta aplicar diversas metáforas que definitivamente não funcionam: a garotinha isolada que convive com a morte — representado por meio de alguns idosos — é carente de profundidade. Com uma irritante música presente na primeira parte, que é aplicada em momentos errôneos, nos afasta ainda mais da intensidade desejada. E quando a obra chega em sua segunda parte, onde a trilha sonora teoricamente teria que ser algo mais natural e gostoso de se ouvir, não é eficaz, pois após mais de 10 minutos já está saturado.

O curta só não é um desastre total, por sua fotografia com luz natural muito bela e enquadramentos inventivos. Mas a tentativa de tratar tantos assuntos com peso bastante relevante para qualquer pessoa e tentar misturá-lo com outras dezenas de referências regionais, acaba transformando tudo em uma bagunça, cansativa e que, pelo menos para mim, acabou não falando absolutamente nada.

Cabras de Merda

A obra do chileno Gonzalo Justiniano se passa na década de 1980, durante a ditadura de Pinochet, no Chile. O diretor fez questão de abordar dois assuntos que sempre são polêmicos: religião e política. Quando o americano Samuel Thompson (Daniel Contesse) chega ao Chile, se hospeda na casa de Glayds (Nathalia Aragonese), que aparenta ser apenas uma chefe de casa, mas é uma militante contra a crueldade do regime.

Os contrastes entre os dois personagens são visíveis. Samuel é um jovem missionário que vem à América do Sul pregar a palavra e os benefícios do progresso. O jovem americano sempre teve seus direitos, com uma família estruturada e uma vida boa. Já Glayds, precisa lutar pela sua liberdade, se mostrando uma mulher empoderada, não deixando ninguém mandar fazer o que não lhe agrada.

Logo no início, temos uma cena que remete diretamente à bíblia, com Samuel orando no centro de uma mesa, e a família de Glayds em volta, uma referência direta da jovem a Jesus Cristo e a última ceia. Fazendo questão de expor a fé de seu personagem, o diretor trabalha um dos melhores desenvolvimentos de personagem que vi no ano — não só de seus protagonistas, mas seus antagonistas também têm extrema importância.

Samuel tem sua fé posta à prova ao conviver com Glayds, não por ela ser uma mulher que seja contra sua fé, mas por ela ser fascinante. Nathalia Aragonese entrega uma atuação sensual, mas sem ser exagerada, ela não precisa de decotes ou de vestidos luxuosos para chegar a esse feito. Por ser uma pessoa que não baixa a cabeça para todos, acaba chamando a atenção do jovem. E sempre que sua fé é desafiada pela luxúria, uma luz alaranjada o envolve, quase como o próprio pecado.

Aqui, a velha distorção de ideologias é delineada, qualquer um que fosse contra ao regime era denominado de ‘’comunista’’, até mesmo o missionário, não importa quem fosse. A repressão tem seu peso de crueldade no filme, através de imagens reais e em momentos sufocantes que os personagens passam. O diretor utiliza bastante câmera na mão para transmitir essa angústia e medo, intensificando a obra, mas não pesando a mão na dramaticidade. Em momentos pontuais, temos descontrações para aliviar, mas sem deixar todas as questões caírem; o humor está ali para não deixar as coisas intragáveis, Justiniano quer que seu público vá até o final, e que todos nós entendamos o que se passa em qualquer ditadura e que nunca devemos ser a favor daquilo.

No terceiro ato, o filme deixa qualquer descontração que vinha trabalhando de lado e se entrega na crueldade de Pinochet e seus comandados. Esta obra vai sempre ser lembrada por mim, por me fazer entender melhor o terrível regime que o Chile passou, o quanto de sangue foi derramado para aquele povo conseguir sua liberdade. E por nos lembrar que não podemos cometer os mesmos erros do passado e lutar com todas as forças contra qualquer tipo de repressão.

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Ítalo Passos

Cearense, estudante de marketing digital e crítico de cinema. Apaixonado por cinema oriental, Tolkien e ficção científica. Um samurai de Akira Kurosawa que venera o Kubrick. E eu não estou aqui pra contrariar o The Rock.

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